Unicamp: Funcionário cria bibliotecas modelo para outros municípios e Estados

Desde a primeira unidade, inaugurada em 1994, na periferia de Campinas, o servidor faz palestras em diversas localidades do País

qui, 29/06/2006 - 16h05 | Do Portal do Governo

Paulo Freire virou-se para a mulher e disse: “Anita, sabe que lá em Campinas fizeram uma biblioteca popular na favela e puseram o meu nome?”. Acostumado aos títulos e honrarias recebidos nos círculos intelectualizados, o educador revelava satisfação diferente ao saber que a homenagem agora partia da periferia, para quem sua pedagogia sempre esteve voltada. O que ele não sabia é que a iniciativa, protagonizada por um funcionário da Unicamp, cruzaria as fronteiras da cidade, transformando-se em modelo para outros municípios e Estados.

A conversa doméstica, relatada pela própria Anita, ocorreu em 1995, um ano depois de Francisco Genézio Lima de Mesquita, técnico administrativo do Instituto de Artes, ter inaugurado a Biblioteca Popular Paulo Freire. A unidade, que nasceu na sala de sua casa, no Jardim Santa Rosa, periferia de Campinas, se expandiu para outros sete bairros da cidade e agora está chegando também em Hortolândia, com o apoio da prefeitura local.

Genézio já perdeu as contas das palestras que fez para falar sobre a biblioteca popular. Só no ano passado esteve em Belém, Manaus, Natal e Recife. Desde 1994, vem liderando e divulgando um movimento que já colocou ao alcance dos moradores da periferia cerca de 10 mil livros. “Quando comecei, ninguém dava nada pelo projeto”, diz. Na época, o Jardim Santa Rosa era um dos bairros mais violentos da cidade. As cerca de 700 famílias conviviam diariamente com altos índices de criminalidade, evasão escolar e drogas. “Achei que uma biblioteca poderia ajudar na formação das crianças e mudar esse quadro”, afirma Genézio.

Pão com mortadela 

“Inaugurar a biblioteca no dia 12 de outubro de 1994 foi um ato intencional”, lembra. A idéia era que ela fosse dirigida às crianças. Regada a suco de groselha e pão com mortadela, a festa foi um sucesso. Era a primeira vez que os moradores, mesmo os adultos, viam uma biblioteca. Nos 12 metros quadrados que delimitavam a sala de estar de sua casa, Genézio organizou 280 livros em prateleiras de madeira que ele mesmo montou. Os volumes, todos doados por alunos e professores da Unicamp, mudariam para sempre a vida de inúmeros jovens da comunidade.

Logo após a inauguração, Genézio sentiu necessidade de comunicar a Paulo Freire que usara seu nome para batizar a biblioteca. Na verdade, era um pretexto para conhecer o educador, de quem se tornara fã incondicional. A oportunidade surgiu de um encontro com o professor Moacir Gadoti, biógrafo do educador pernambucano, que foi à Unicamp para participar de uma banca de mestrado. “Ele gostou da idéia da biblioteca e me deu o telefone do Paulo Freire.”

Genézio não perdeu tempo. Ligou no mesmo dia. Quando ouviu o educador do outro lado da linha, não sabia o que dizer. “Professor Paulo Freire, aqui é o Genézio”. E Freire: “Que Genézio?” A resposta foi longa. Genézio pôs-se a falar da tal biblioteca que havia inaugurado no Jardim Santa Rosa. Contou sobre o interesse dos moradores, da alegria das crianças, da festa da inauguração, dos problemas do bairro, da violência, de suas expectativas. No final, pediu um encontro com Freire: “Precisamos formalizar sua autorização para o nome da biblioteca”. Para alegria de Genézio, o educador concordou.

Encontro com Freire 

No dia e horário combinados, Genézio apertava a campainha da casa de Freire no bairro do Sumaré, em São Paulo. “Foi a experiência mais marcante da minha vida”, lembra. Dez anos depois, ainda traz vivos na memória todos os detalhes. “Ele estava de calça branca e camisa vermelha. Na sala havia um monte de objetos indígenas e na varanda, um passarinho amarelo numa gaiola”. Genézio fotografou tudo. E se impressionou com a paciência do mestre. “Ele não era de falar muito; gostava de ouvir.”

Freire ouviu muito. Mas Genézio queria mais. Pediu a ele que fosse a Campinas fazer uma palestra. “Genézio, meu filho, minha vida é muito corrida”, respondeu Freire. O visitante não desistiu: “Não tem problema, professor, marca para quando o senhor puder”. Freire consultou a agenda e marcou para dali a seis meses. De volta a Campinas, Genézio foi direto ao gabinete do então secretário municipal de educação, Ezequiel Theodoro da Silva. “Secretário, consegui trazer o Paulo Freire para Campinas.” Ezequiel duvidou: “Você, Genézio?” Ele manteve a pose: “Pois é, estive na casa dele ainda há pouco e me garantiu que vem. Quero que o senhor me ajude com cartazes, folders e a cessão do Teatro Castro Mendes”.

Ezequiel resolveu apoiar. O evento foi marcado, a divulgação foi feita, mas uma semana antes Freire ligou para Genézio, avisando que não poderia ir, por problemas de saúde. Era o início da doença que o levaria à morte um ano depois, em maio de 1997. Ezequiel gelou, quis cancelar o evento, mas Genézio não arredou pé. Convidou Moacir Gadoti para substituir Freire. No dia marcado, 600 pessoas lotaram o Castro Mendes. O encontro foi um sucesso.

Roubo 

Nem sempre, porém, as coisas deram certo para Genézio. Certa  vez arrombaram a biblioteca e furtaram 200 livros. “Quando vi a porta arrebentada e as prateleiras vazias, fiquei indignado”. Pior para os ladrões. Genézio podia suportar tudo, menos que mexessem com sua biblioteca. Conhecendo a comunidade, foi direto à casa de um morador cuja fama no bairro não era das melhores. “Sei que vocês roubaram meus livros, quero tudo de volta hoje mesmo ou então vou à polícia”. O tal morador riu na cara de Genézio. Ele foi à polícia.

Na delegacia, Genézio foi objetivo: “Delegado, roubaram meus livros e sei quem são os ladrões. Quero que o senhor vá lá prendê-los”. Em questão de minutos, Genézio estava no camburão levando a polícia à casa suspeita. Ao chegarem, os policiais surpreenderam quatro homens mal-encarados, que tentaram fugir, mas foram detidos. Dentro da casa, vários objetos furtados, entre eles os livroa. Minutos depois estavam todos de volta à biblioteca, de onde nunca mais saíram, a não ser para espalhar cultura entre os moradores do Jardim Santa Rosa.

Clayton Levy

Da Assessoria de Imprensa da Unicamp