Serviços atendem homens anoréxicos

O Estado de S. Paulo

seg, 18/05/2009 - 8h22 | Do Portal do Governo

Faltam estudos epidemiológicos, mas médicos veem procura crescer

Carlos (nome fictício) tem 30 anos e está acostumado a vestir roupas infantis. Com 1,70 metro de altura e 49 quilos, ele tenta sair de uma rotina que inclui dupla jornada de trabalho movida apenas por duas barras de cereal e um suco no almoço. Internado duas vezes, ele é um exemplo do que se torna cada vez mais comum nos consultórios e ambulatórios psiquiátricos: casos de anorexia e bulimia masculinas.

Os dados sobre a presença dos distúrbios entre homens ainda são escassos, assim como a oferta de serviços especializados. Um dos poucos locais a abrir as portas para esse público, o Ambulatório de Bulimia e Transtornos Alimentares (Ambulim) do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (IPq-USP) tem atendido a uma demanda reprimida – atualmente, 30 homens passam por tratamento no local, a maioria entre 17 e 22 anos. Em 2008, o IPq atendeu 563 pacientes com transtornos alimentares: 104 do sexo masculino, o equivalente a 18% dos atendimentos.

Já o Programa de Orientação e Assistência aos pacientes com Transtornos Alimentares (Proata) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) atendeu cerca de 180 pessoas no ano passado: 15 eram homens.

“Uma das dificuldades é o preconceito em aceitar ser portador de uma doença conceituada erroneamente como exclusivamente feminina”, explica o psiquiatra Alexandre Pinto de Azevedo, do Ambulim. Boa parte dos que conseguem chegar ao atendimento, segundo ele, são portadores da anorexia nervosa atípica – apresentam parte dos sintomas clássicos da doença, como perda exagerada de peso, recusa em ingerir alimentos, prática intensa de exercícios, visão distorcida do corpo e episódios de depressão.

Esse quadro, associado à falta de informação e ao preconceito, pode mascarar a doença por anos – até que, em algum momento, a saúde se agrava e familiares ou amigos percebem que há alguma coisa errada.

No caso de Carlos, o sinal veio quando ele desmaiou no supermercado. “Sofro de queda de cabelo, dores nos rins, resfriados frequentes, fraqueza, desmaios, amolecimento dos dentes e náuseas”, conta ele, que se trata há três anos.

São consequências comuns da privação alimentar pela qual se submetem os portadores da doença – nos casos mais graves eles chegam a um grau tão alto de desnutrição e recusa em se alimentar que precisam ser internados e alimentados por sonda. “Uns dias venço. Em outros, sou vencido”, desabafa Carlos, que ainda faz grande esforço para cumprir as indicações da nutricionista e do médico. Evita o espelho, pois ainda se considera gordo. Há dias em que sente vontade de fazer os percursos na cidade à pé, para emagrecer.

Novo padrão

A psiquiatra Angélica Claudino, coordenadora do Proata, percebe maior procura de homens pelo serviço nos últimos 14 anos por uma mudança cultural. “Mas faltam estudos epidemiológicos para confirmar essa intuição”, aponta.

“Nos últimos anos vivemos uma mudança no padrão de beleza masculino, mesmo processo que aconteceu com as mulheres décadas atrás. O corpo esguio, com músculos definidos, passou a ser mais cobrado dos homens”, afirma a psiquiatra Paula Melin, do Núcleo de Transtornos Alimentares e Obesidade (Nuttra), no Rio. “Um dos inúmeros dados que mostram concretamente essa mudança é o aumento de anúncios e artigos sobre beleza e tratamentos estéticos nas revistas masculinas”, diz.

Além disso, proliferam clínicas de estética para homens, lançamentos de cremes para a pele masculina e procura por cirurgia plástica. Dados da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica mostram que, entre 2007 e 2008, foram realizadas mais de 55 mil cirurgias plásticas em homens – entre lipoaspiração, rinoplastia e colocação de prótese de silicone nas pernas e no peito.

“Não quer dizer que a mudança cultural é a única responsável pela doença: há predisposição genética, características de personalidade individual e de histórico familiar envolvidas, mas com certeza ela funciona como um gatilho, um fator que tem um peso forte nesse conjunto”, explica Paula.

A psicóloga Christina Morgan, do Proata, também observa crescimento da procura masculina por tratamento, e concorda com a análise de Paula. “O homem tornou-se também objeto da cultura do corpo, do descartável, da imagem”, diz.

Christina explica que o tratamento de homens e mulheres é muito semelhante: uma equipe multidisciplinar busca priorizar a recuperação do peso e, ao mesmo tempo, atua para libertar a pessoa da visão distorcida que tem do próprio corpo. “Há talvez uma particularidade masculina: alguns mostram preocupação com o vigor muscular, embora o grande pavor ainda seja o de engordar”, afirma a psicóloga. “Naturalmente, também há aqui um erro na percepção que a pessoa tem do próprio corpo: a alimentação ruim debilita progressivamente os músculos.”

Algumas pesquisas também indicam uma maior ocorrência entre homens homossexuais do que entre heterossexuais. Por outro lado, há menos ocorrências entre mulheres homossexuais do que entre as heterossexuais. Paula arrisca uma interpretação: “Tal dado é explicado, acredita-se, pelo fato de a cultura homossexual masculina valorizar o corpo, a aparência, e a feminina, pelo contrário, ser mais tolerante a mulheres com corpos diferentes.”

Para os pais

O auxílio precoce é parte da cura de distúrbios alimentares. Alguns sinais são:

Aumento notável na preocupação com comida e forma física
Diminuição da sociabilidade: como muitas diversões envolvem alimentação, jovens com o transtorno evitam tais programas
Aumento da irritabilidade e agressividade, especialmente com os pais