Mulheres relatam os desafios diários no universo da ciência

Universidade de São Paulo consultou pesquisadoras e reuniu dados para verificar oportunidades e barreiras no setor

sáb, 16/03/2019 - 14h03 | Do Portal do Governo

É dentro das universidades que boa parte da ciência brasileira acontece – e mais de um quinto dessa produção vem da Universidade de São Paulo (USP). Olhar para a presença e importância da mulher na instituição, então, é um jeito de enxergar como tem caminhado a representatividade feminina na academia.

A instituição consultou mulheres que fazem ciência na universidade e reuniu dados para tentar entender por que o caminho delas na pesquisa parece ainda tão difícil de trilhar. E, de forma bastante crítica, analisou informações curiosas e relatos de preconceito e discriminação – até para os tempos mais primórdios do setor no Brasil.

Suely Vilela, que foi pró-reitora de Pós-Graduação, por exemplo, foi a única mulher a assumir a reitoria da USP, que também só teve uma vice-reitora, a professora Myriam Krasilchik.

“Se olharmos a USP como um todo, vemos que tem muito mais homens do que mulheres nas posições de comando, na liderança dos grupos de pesquisa. É o chamado ‘Efeito Matilda’, nome dado por uma historiadora da ciência para falar do preconceito contra a mulher nesse meio. É muito comum ainda não darem os créditos para as mulheres”, conta Bernadette Dora Gombossy de Melo Franco, 68 anos, que foi pró-reitora de Pós-Graduação da USP de 2014 a 2016 e hoje é pesquisadora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas.

Direção

Das 42 unidades existentes, 15 são dirigidas por mulheres. Somente há um ano, uma mulher assumiu a diretoria da Escola Politécnica da USP, por exemplo. Na área das Ciências Exatas, isso é muito mais comum do que se possa imaginar.

“O professor recebeu um telefonema do gerente de uma grande empresa que estava procurando um estagiário. Na época, eu estava no último ano da graduação e ele me recomendou. A pessoa do outro lado linha falou que gostaria de um homem. O professor disse: ‘essa moça é o melhor homem que tenho aqui’ e eu fui contratada”, relatou Maria Cristina Ferreira de Oliveira, a primeira diretora do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP.

Zehbour Panossian, atual diretora de Inovação do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), é a 18ª pessoa e primeira mulher a assumir esse cargo. “Eu queria fazer pós-graduação e me tornar doutora. Quando cheguei, o diretor me disse que mulheres físicas não entravam lá, então fui para outro instituto. Depois de alguns anos, esse mesmo professor visitou o laboratório onde eu trabalho e ficou encantado. Ele nem lembrava de mim, mas aquilo me marcou muito”, recorda.

Uma longa batalha

Não somente dentro da USP os números parecem desafiadores. Um estudo da Unesco publicado em 2018 mostra, por exemplo, que menos de 30% dos cientistas em todo o mundo são mulheres. O Prêmio Nobel também confirma a estatística: nas áreas de Física, Química ou Medicina, 572 homens já foram agraciados, contra apenas 17 mulheres.

Tais impactos podem ser explicados quando você mergulha no universo mais íntimo destas mulheres: segundo a (Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), metade das mães cientistas brasileiras são as únicas responsáveis pelo cuidado dos filhos e cerca de 81% delas avaliam que a maternidade teve resultados negativos em sua carreira. Somente em 2017 foi sancionada uma lei que dá a bolsistas de pesquisa o direito a afastamento por maternidade ou adoção por 120 dias.

“Fiquei grávida no final do doutorado e defendi a tese com um barrigão, três semanas antes do meu primeiro filho nascer. Depois, tive um filho depois do outro: quatro filhos em quatro anos. Não tive ajuda, então tive que parar e, quando decidi voltar, já era tarde para conseguir uma bolsa de pós-doutorado, pois as agências de fomento impõem um limite de tempo após a defesa da tese. Então decidi prestar a Fuvest. Estava com quase 40 anos e comecei um cursinho”, conta Ana Carolina Souza Ramos de Carvalho, de 42 anos, pesquisadora do Instituto de Química da USP, em São Paulo.

“Passei em Meteorologia e fui fazer uma iniciação científica em uma área completamente diferente da minha, no Laboratório de Astrobiologia. Eu adorei lá e queria voltar a fazer pesquisa, então tranquei o curso e ingressei no mestrado. Hoje, estudo, basicamente, como seria a vida fora da terra e, principalmente, como adaptar alguns microrganismos à vida em Marte. Meus filhos têm hoje 10, 9, 8 e 6 anos. Todos os dias levo as crianças para a escola e venho para a USP fazer os experimentos”, desabafa.

Associações

A Academia Brasileira de Ciências, uma das mais antigas e prestigiadas associações do País, reflete bem o que é esse universo para as mulheres: de seus 518 membros titulares, 69 são do sexo feminino. Fundada em 1916, ela nunca teve uma presidente, assim como o CNPq, criado em 1951. Mesmo lutando contra a maré, tem gente que acredita que o jogo está mudando aos poucos.

“A Ciência ainda é masculina. Vemos a anulação da mulher-mãe para priorizar a carreira como cientista. Mas, eu acredito que, dia após dia, essa cultura se quebrará”, concluiu Maria Carolina Quecine Verdi, de 37 anos, docente do Departamento de Genética Molecular na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, em Piracicaba.