Justiça Restaurativa atua no bairro de Heliópolis e Guarulhos

Na capital paulista, oito escolas participam do Projeto Justiça e Cidadania; em Guarulhos, são 11 instituições de ensino

ter, 20/11/2007 - 12h01 | Do Portal do Governo

O horário do recreio para Jefferson*, Carlos* e Paulo Henrique* era um transtorno. Sem atividades de lazer, porque o grêmio da escola (localizada em Heliópolis) estava fechado há um ano, não paravam um só minuto. Ora empurrando um ao outro, ora chutando mochilas ou o que encontravam pela frente. Cansados dessa situação, decidiram que aquele dia seria inesquecível para todos na escola. Na noite anterior, compraram fogos de artifício e resolveram fabricar uma bomba caseira para ser detonada no pátio.

No horário combinado, explodiram o artefato. Mas não previram o trágico resultado: suas melhores amigas – Mariana*, Cláudia* e Jacqueline* –  foram atingidas pelo fogo da explosão. Mariana teve parte do braço queimada. A história poderia ter um final triste, mas graças ao Projeto Justiça e Cidadania, na qual a escola em que os meninos estudam está integrada, as vítimas foram encaminhadas a um círculo restaurativo.

Durante a sessão, os idealizadores do artefato (Jefferson, Carlos e Paulo Henrique) participaram com as receptoras (no caso, as vítimas) do círculo restaurativo. No acordo estabelecido, decidiu-se que visitariam o Corpo de Bombeiros (unidade Ipiranga) e conheceriam de perto o dia-a-dia da corporação e quais as conseqüências do ato que praticaram.

Da experiência adquirida, os garotos resolveram escrever e editar um jornal para falar sobre o incidente e como suas vidas mudaram a partir do círculo. A escola também cumpriu sua parte no acordo. Está abrindo as portas do grêmio para a garotada. “Resolvi que minha vocação é ser bombeiro. Para isso, estou preparando-me para entrar na corporação”, disse Jefferson satisfeito.Educação e cidadania – O Projeto de Justiça Restaurativa no Estado de São Paulo começou em julho de 2006 no município de São Caetano do Sul, no bairro de Nova Gerty. A experiência bem-sucedida chegou, agora, ao bairro de Heliópolis, comunidade vizinha. No mês de outubro do ano passado, começou a capacitação dos facilitadores, professores e das oito escolas participantes.

“No próximo ano, vamos qualificar mais sete instituições de ensino, totalizando 15 unidades que receberão os círculos restaurativos”, assegurou Egberto de Almeida Penido, juiz da Vara da Infância e da Juventude da Capital e responsável pelo projeto na cidade de São Paulo.

No caso de Heliópolis, a Diretoria Centro-Sul é parceira da iniciativa. “Nossas oito escolas abrigam 13.750 alunos e muitos cursam o ensino médio. Os problemas são os mais variados: desde brigas entre colegas a estouro de bomba. O Projeto de Justiça Restaurativa é um veículo importante para aperfeiçoar as relações entre as pessoas. A comunidade tem ajudado bastante e acredita no processo. Precisamos preparar nossos alunos para enfrentar o mundo e a trabalhar suas emoções e a aceitar melhor as diferenças”, explicou Maria Isabel Faria, dirigente de Ensino da Diretoria Centro-Sul.

Sheila Bazarim, assistente técnico-pedagógica da Diretoria Centro-Sul, participou do curso de capacitação de facilitadores. “Pretendo continuar atuando nessa área. Precisamos mudar os nossos meios para resolver conflitos. O diálogo é muito importante; devemos melhorar a relação entre aluno-aluno, professor e diretor, aluno com professor, além de mostrar a todos as pessoas que somente uma conversa franca poderá solucionar a contento, que atitudes agressivas não levam a nada”.Conversa franca – “As pessoas precisam entender que justiça restaurativa não é passar a mão na cabeça daquele que se envolveu em alguma situação grave. É um processo demorado, que agrega muitos agentes, incluindo a comunidade, para que todos revejam suas posições”, esclareceu Luciana Bergamo Tchorbadjian, promotora da Vara da Infância e da  Juventude da Capital.

A idéia da justiça restaurativa é que as escolas, a comunidade e o Conselho Tutelar criem espaço para a resolução de conflitos, em princípio pelo círculo restaurativo, em casos de delitos e atos infracionais de menor potencial ofensivo. Calúnia, injúria, desacato, dano patrimonial e lesão leve, quando os participantes não têm antecedentes.

“O projeto é apaixonante, há grande comprometimento social e além de tudo é vanguardista. Na Nova Zelândia e no Canadá, outros tipos de crime também são abordados pela justiça restaurativa. A expectativa é que todas as escolas de São Paulo integrem no projeto”, frisou Tatiana Belons Vieira, defensora pública da Vara da Infância e da Juventude da Capital.

Para aperfeiçoar a qualidade do atendimento foi formada uma rede de apoio: diretoria de ensino, conselho tutelar e fórum. “Nos reunimos mensalmente com as lideranças comunitárias em uma escola. Realizamos trabalhos de técnicas restaurativas com o corpo docente durante o Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC). O trabalho de facilitador é voluntário”, explicou Maria Isabel.Fatores desencadeantes – “Quando um caso de justiça restaurativa é encaminhado para a Vara da Infância e da Juventude, verificamos as possibilidades de o adolescente ser encaminhado para um círculo restaurativo. O mais importante é que ocorra um pré-círculo, antes que o caso venha parar em nossas mãos. No pré-círculo, os integrantes tentam chegar a um acordo; se isso não ocorrer, o caso vem parar aqui, conversamos com todos e os encaminhamos para o círculo restaurativo.

Uma audiência pode durar uma tarde inteira. Em alguns casos, as pessoas não querem participar do círculo”, disse o juiz Egberto. O círculo restaurativo, na maioria das vezes, detecta problemas que vão além daquele que gerou o fator desencadeante. Brigas, histórico problemático, abuso, maus-tratos, abandono, alcoolismo ou drogas são alguns dos fatores apontados por Edmundo Barboza Silva, diretor e psicólogo da Associação de Sociedades de Moradores de Heliópolis e São João Clímaco (Unas), para levar o jovem a ser coadjuvante nesses casos.

Edmundo explicou que no círculo restaurativo os adolescentes vão sempre acompanhados pelas pessoas com quem têm relacionamento mais íntimo: pais, mães, amigos, namoradas ou mesmo o líder da comunidade ou da igreja. “A justiça restaurativa não é tão tranqüila como as pessoas pensam. O infrator é levado a refletir sobre os seus atos e a se colocar no papel da vítima. É melhor do que interná-lo numa instituição e fazê-lo cumprir pena. Lá, ele não conhece o outro lado: o da vítima”.

Guarulhos: carência e miséria

A localização geográfica de Guarulhos, vinculada com São Paulo, condicionou o seu desenvolvimento ao da capital. O município tem grandes contingentes populacionais vivendo em situação de carência e miséria. Dentre as famílias, 7,4% estão abaixo da linha de pobreza, sobrevivendo com renda mensal inferior a meio salário mínimo. Dados do IBGE de 1996 mostram que a população que vive em favela era de 16,4% do total. A mesma pesquisa revelou que 19,9% das mães não gostam da escola freqüentada pelos filhos. O principal motivo é a violência (67,5%).

Por esses fatores, teve início, em outubro de 2003, o Projeto de Mediação da Vara da Infância e da Juventude de Guarulhos, em parceria com a Faculdades Integradas de Guarulhos (FIG), aprovado pelo Tribunal de Justiça. Na primeira capacitação, um grupo de 20 mediadores foi formado.

“Desde a concepção, o projeto de mediação já tinha o enfoque das Práticas Restaurativas, especialmente no que se refere aos atos infracionais de natureza leve, nos quais se realizava a mediação entre vítima e ofensor”, esclareceu Daniel Issler, juiz da Vara da Infância e da Juventude de Guarulhos.

Caráter definitivo

Passado o período experimental e constatada a eficiência do sistema implementado, o projeto foi aprovado pelo Tribunal de Justiça para funcionar em caráter definitivo, com a celebração de convênio entre o Judiciário Estadual e a instituição de ensino, ocorrida em outubro de 2006, passando o aparelhamento a denominar-se Setor de Mediação de Guarulhos.

O juiz explicou que após a parceria entre o Poder Judiciário, o Ministério Público, a ONG Amici di Bambini (AIBI) e a Associação de Assistentes e Psicólogos do Tribunal de Justiça (AASPTJ), além de outras ONGs, foi realizado, entre 2004 e 2005, um projeto que englobava as circunscrições judiciárias de Guarulhos e de Registro. O objetivo era conferir formação, capacitação e atualização no Direito da Criança e do Adolescente à Convivência Familiar.

Hoje, 11 escolas estaduais de Guarulhos participam de justiça restaurativa e há previsão para mais quatro unidades participarem do projeto. Todas têm estudante cursando o ensino médio. Os principais problemas apresentados são agressão entre alunos ou entre professores e alunos.

“A sociedade é muito violenta e geralmente esses adolescentes levam para a escola os valores aprendidos no dia-a-dia. Acham que somente com agressão podem resolver os seus problemas”, ressaltou Daniel Issler. Até agora, foram realizados 75 círculos restaurativos nas escolas do município e 43 na Vara da Infância e da Juventude, onde foi instalado espaço para círculos restaurativos.Facilitadores – As pessoas interessadas em trabalhar no projeto realizaram curso de capacitação de 80 horas. Wânia Hamade e Lígia Rodrigues são facilitadoras, funcionárias da Vara da Infância e Juventude de Guarulhos, participam do Projeto de justiça restaurativa desde o início. Agora, passam por curso de reciclagem do tema.

“É estimulante trabalhar dessa maneira. Ouvir as partes, conhecer a história que está por trás de um ato é muito importante. Muitos dos facilitadores levam para sua vida pessoal o que aprenderam durante o curso de facilitadores”, disse Wânia.

Ligia aprendeu durante os círculos restaurativos de que participou que todo autor também é vítima. “No círculo, não orientamos as partes. Elas conversam, desabafam e vivem momentos de angústia que só durante um círculo é possível verificar qual a extensão do dano exercido pelo autor. Por isso, a presença da vítima é fundamental. Muitos não gostam de participar, mas, quando vêem como funciona, fazem questão de aderir ao processo”, esclareceu.

Orkut gera crise familiar

Não existe lugar melhor do que o Orkut para conhecer pessoas interessantes. Mas para as primas Mariângela* e Roberta* o site de relacionamento gerou crise familiar. Tudo começou com uma discussão. Para vingar-se, Mariângela resolveu difamar a prima na rede de relacionamentos. O problema comprometeu toda a família. Tios, avós e pais das adolescentes resolveram “comprar” a briga. As duas jovens atracaram-se na escola e o caso foi parar na Vara da Infância e da Juventude de Guarulhos. “Participamos do círculo restaurativo e vimos o sofrimento dos avós, principalmente. A relação familiar estava esgarçada. Durante o círculo restaurativo, descobrimos os verdadeiros problemas que estavam atrás daquele ato. A situação foi esclarecida e após o acordo firmado, a família voltou a relacionar-se novamente. Os resultados excelentes obtidos nos círculos nos estimulam a acreditar mais na justiça restaurativa”, finalizou Wânia.

(* Para permitir a privacidade dos estudantes, os nomes mencionados no texto são fictícios)

Por Maria Lúcia Zanelli, da Agência Imprensa Oficial

(C.C.)