José Serra homenageia Franco Montoro no Mosteiro de São Bento

São Paulo, 16 de julho de 2009

qui, 16/07/2009 - 23h00 | Do Portal do Governo

Governador José Serra: Fiquei preocupado, porque o discurso do José Carlos Dias (ex-ministro da Justiça e advogado criminal) foi surpreendentemente curto, e o do Gilberto (Kassab, prefeito de São Paulo), como de hábito, (também foi) curto – e eu tinha preparado algo mais longo.

Bem, primeiro uma palavra a respeito deste Mosteiro (de São Bento) que, com 400 anos de existência, está profundamente ligado à História de São Paulo. Aqui se abrigou o Amador Bueno (da Ribeira) quando os paulistas o aclamaram rei, em 1641, na primeira manifestação nativista em terras brasileiras. Aqui também foi a primeira instituição do Brasil a alforriar os seus escravos, quase duas décadas antes da Lei Áurea.

Durante a revolução de (19)24, esta casa, este Mosteiro abriu generosamente suas portas para acolher seis mil civis que se encontravam desabrigados. Nas décadas de (19)60 e (19)70, quando o País passava por um dos seus momentos mais difíceis, corajosamente este Mosteiro acolheu muitas pessoas perseguidas pela ditadura. Aqui, portanto, é uma casa onde se expressa um sentimento de nacionalidade, um compromisso com a liberdade, um espírito, mas sobretudo, ações efetivas de solidariedade. A solidariedade e a fé são marcas do Mosteiro de São Bento e do seu Colégio.

Em um certo sentido estas marcas se identificam com a trajetória do nosso querido (Franco) Montoro, que aqui fez o seu curso secundário. Depois, na Faculdade São Bento, que foi a semente da PUC (Pontifícia Universidade Católica), formou-se em Filosofia. Aqui (ele) se casou e aqui, juntamente com muitos de nós, muitos de nós aqui presentes, comemorou a sua Boda de Ouro. Me lembro até hoje disso, deve ter sido por volta de 1990. (Montoro foi) um homem que, também a partir da sua formação nessa casa, dedicou-se inteiramente às causas da liberdade, da democracia, da solidariedade… – enfim, de um conjunto de princípios que impulsionaram a sua vida pessoal e a sua vida política.

Eu tive a oportunidade de compartilhar um trabalho comum com o governador Montoro. Fui o seu secretário de Economia e Planejamento.

Era, talvez, de todos, o que vivia com ele mais próximo. Quero dizer que, fazendo um balanço, o Montoro foi o homem público mais entusiasmado que eu conheci, capaz de dedicar o mesmo esforço de persuasão a uma grande multidão e a um pequeno grupo de militantes, preferencialmente jovens.

Há uma história que o Geraldo Alckmin (secretário de Estado de Desenvolvimento e ex-governador de São Paulo) lembra bem: em julho de 1988 nós estávamos indo para a Câmara de Vereadores de Cruzeiro (Município do Vale do Paraíba). Eu e o Alckmin, acompanhando o Montoro, depois de percorrermos todo o Vale do Paraíba, empenhados na fundação e organização do PSDB nos Municípios. Um trabalho difícil, porque só conseguimos (a adesão de) cinco prefeitos, e dois nos traíram depois – de maneira que ficamos com três prefeitos. Já era tarde, atrasaram-nos muito, não havia mais do que cinco ou seis pessoas no plenário, lá em Cruzeiro, entre elas o presidente do partido (PSDB) e o deputado da região. Quer dizer: em termos líquidos, três pessoas. O Montoro foi o último a falar e começou (dizendo) algo assim: “Meus amigos, é o entusiasmo de vocês que nos motiva, que nos estimula numa luta, nesta luta para mudar o Brasil”. Esse era o Montoro.

Contrariando uma lei da política, ele entrou na vida pública bem moço. E nos deixou há dez anos, cinco ou seis décadas depois, mais idealista, lúcido e otimista sobre o futuro, o contrário do que costuma acontecer.

Ele pertencia a um grupo de pessoas que eu admiro muito, (pessoas) que sabendo que vão morrer amanhã são capazes de dedicar-se, na véspera, a plantar um carvalho. No Congresso (Nacional), na Assembléia (Legislativa), na Câmara de Vereadores foi sempre um legislador exemplar. À frente do Governo de São Paulo mostrou também que era um grande executivo.

Quando ele assumiu o Governo, eu tinha chegado recentemente do exílio e não conhecia de perto as práticas da política chamada convencional. Por isso, na ocasião, talvez nem eu, nem outros, tenhamos valorizado na medida justa o seu estilo de formar uma equipe, procurando escolher os melhores e ignorando, ou resistindo de forma desassombrada, às pressões fisiológicas. A gente achava que era natural, que não havia um grande mérito nisso. Imaginem para quem, depois, nas décadas seguintes, conviveu de perto com a política brasileira.

Como eu disse, estive muito próximo a ele durante três anos e notava, diariamente, um atributo, uma virtude: sua paciência infinita, sua tolerância para com os defeitos dos outros e as divergências dos adversários. Ele era incapaz de insultar alguém pela frente ou por trás. Respeitar o próximo era o seu modo de ser. Eu só ouvi ele dizer um palavrão, uma vez ao longo de uma convivência contínua de cinco anos, digamos, desde antes da eleição. E um palavrão merecido, que eu não vou repetir aqui em uma casa de Cristo. (O Montoro) tinha, como comandante de equipe, uma qualidade rara e que ajudou muito no desempenho do seu Governo. É uma qualidade rara, acreditem. Ele não concorria com os seus subordinados – vibrava com os seus eventuais sucessos, não tripudiava sobre os seus fracassos e não centralizava a administração embora, diga-se de passagem, soubesse cobrar resultados e fazer mudanças nos momentos adequados.

E, a propósito de erros e fracassos, eu queria lembrar aqui de um jantar simples, dos muitos que aconteciam com ele, a Dona Lucy (Montoro) e a minha presença na ala residencial do Palácio. Estávamos no começo do Governo e eu não tinha, infelizmente ainda não tenho, a mesma natureza do Montoro, cujo ânimo sempre voava mais alto. E eu falava dos meus receios sobre o futuro da administração, comprometida pelo descalabro que herdáramos do Governo anterior, pela crise econômica que corroía as receitas, pela demanda de serviços sociais à população desempregada e pela combatividade do funcionalismo, que tinha pressa em recuperar décadas de poder aquisitivo corroído.

Apesar de não ser dado a conselhos – Montoro não era um homem de dar conselhos – e à emissão de juízos, ele fez uma reflexão que eu tratei sempre de assimilar – e que acabei reencontrando muito depois em um poema de (Rudyard) Kipling, lembrado por Borges: “Não se perturbe muito, pois o êxito e o fracasso são impostores. Ninguém fracassa tanto quanto acredita, nem tem tanto êxito quanto imagina”.

A convivência diária no trabalho permitiu-me também aprender pequenos detalhes do seu estilo de fazer política. Em relação à imprensa, por exemplo, ele exibia três particularidades invejáveis, que eu até hoje não consigo copiar bem, embora tenha me esforçado. Primeiro: jamais reclamava de notícias injustas – e olha que haviam notícias injustas no seu Governo, por erradas, por comentários agressivos, por passionais. Segundo: não costumava falar em “off” para os jornalistas – aliás, o Montoro não tinha “off”, o que ele dizia em um cochicho, tirando a forma, naturalmente, era o que dizia numa reunião ou num jantar com a Dona Lucy ou com o (filho) Andrezinho; não tinha “off” com o Montoro. Terceiro: quando alguém o procurava nervoso para comentar ou reclamar de alguma notícia de imprensa, ele sempre respondia que não tinha lido – (ele) tinha, mas dizia que não tinha lido. Com isso, conhecia primeiro a opinião dos interlocutores, evitava fazer avaliações precipitadas e economizava conversas tensas e demoradas, que ele detestava.

Montoro nasceu conciso também. De fato, só perdia a proverbial paciência quando tinha que ouvir discursos longos nos palanques, (então) ficava louco da vida. Manifestava, embora sempre com muita boa educação, a sua pressa – e fazia comentários ao pé do ouvido que deliciavam os seus companheiros de palanque, como o Fernando Henrique (Cardoso), o (Mário) Covas, o doutor Ulisses (Guimarães) e eu próprio. Quando (o Montoro) completou 80 anos (de idade), o jornalista Hélio Gaspari lhe perguntou: “Olhando para trás, qual foi o seu melhor momento na política? Algum de que se arrependa?”. Montoro disse: “Eu me orgulho de duas coisas. Primeiro, de ter iniciado a campanha pelas eleições diretas para presidente. Segundo, de ter sido o primeiro governante brasileiro a lutar obsessivamente pela descentralização dos poderes do Estado e pela participação da sociedade civil no processo de desenvolvimento”. Eram ideias consideradas inviáveis, que hoje fazem parte do cotidiano da nossa vida política. E a segunda parte da resposta: “Quanto ao arrependimento na vida publica, é coisa que não carrego comigo. Eu sigo um velho ensinamento do Padre Lebret. O importante é você se considerar um Zé Ninguém a serviço de uma grande obra. Eu sou um Zé Ninguém há oitenta anos, mas posso olhar para trás com orgulho e para a frente com esperança”.

Poderíamos acrescentar ainda ao seu balanço: nós todos nos orgulhamos muito de ter convivido com ele e ter procurado seguir o exemplo de um homem que provou a verdade dos grandes sábios, como Buda, Maomé, Maimônides, São Francisco de Assis. A melhor forma de servirmos a nós próprios, e sermos felizes, é (nos) dedicarmos aos outros, diminuindo seus sofrimentos e lutando por sua felicidade.

Isso era o Montoro!