O sistema imunológico humano às vezes falha ao reconhecer tecidos e órgãos como elementos próprios do corpo e passa a atacá-los como se fossem invasores. Esse erro de identificação é denominado autoimunidade agressiva e desencadeia doenças como a síndrome poliglandular autoimune tipo 1 (APS-1) e o diabetes mellitus do tipo 1.
Nos últimos anos, descobriu-se que dois genes que atuam nas células da medula do timo (células mTEC) controlam a autoimunidade agressiva: o Fezf2 (sigla em inglês de forebrain-expressed zinc finger 2) e, principalmente, o Aire (sigla em inglês de autoimmune regulator).
Um grupo de pesquisadores das faculdades de Medicina (FMRP) e de Odontologia de Ribeirão Preto (FORP) da Universidade de São Paulo (USP) usou o sistema CRISPR/Cas9 – uma ferramenta de edição do DNA – para manipular o gene Aire e, dessa forma, entender melhor como ele atua no controle de doenças autoimunes.
O estudo, resultado de um projeto de pesquisa apoiado pela FAPESP e do trabalho de mestrado de Cesar Augusto Speck-Hernandez feito na FMRP-USP, foi publicado na revista Frontiers in Immunology.
“Usamos, pela primeira vez, o CRISPR/Cas9 para ‘anular’ o Aire em células mTEC de camundongos cultivadas in vitro (fora do corpo dos animais) e estudar o efeito da perda de função desse gene”, disse Geraldo Aleixo Passos, professor da FMRP e da FORP-USP e coordenador do projeto, à Agência FAPESP.
Passos explica que as doenças autoimunes são desencadeadas por autoanticorpos (que reagem contra o próprio corpo) ou pelos linfócitos T autoagressivos. Essas células, provenientes dos “timócitos”, são “educadas” na glândula do timo (um órgão torácico, situado logo à frente do coração) para não atacar os elementos próprios do corpo.
Quando essa educação falha, o timo deixa escapar para o resto do corpo linfócitos T autoagressivos que podem agredir órgãos, como a glândula suprarrenal (causando a síndrome APS-1) ou o pâncreas, onde destroem as células produtoras de insulina e provocam o surgimento do diabetes mellitus do tipo 1.
Pesquisadores da área de imunologia sempre associaram a função do gene Aire com a eliminação dos timócitos autoagressivos, pois os pacientes com a síndrome APS-1, por exemplo, apresentam mutações na sequência do DNA desse gene. Mas ainda não havia uma demonstração cabal que validasse essa associação.
“Decidimos testar a hipótese de que o gene Aire estaria envolvido na eliminação dos timócitos autoagressivos ao controlar a adesão física ou contato deles com as células mTEC. Sem o contato físico com as células mTEC os timócitos autoagressivos não são eliminados”, disse Passos.
O artigo Aire disruption influences the medullary thymic epithelial cell transcriptome and interaction with thymocytes (doi: 10.3389/fimmu.2018.00964), de Cesar A. Speck-Hernandez e outros, pode ser lido na revista Frontiers in Immunology em www.frontiersin.org/articles/10.3389/fimmu.2018.00964/full.