Entre a ciência e a condição feminina

Dissertação da socióloga Maria Inez Montagner resgata obstáculos e preconceitos enfrentados por pesquisadoras

qua, 14/03/2007 - 19h22 | Do Portal do Governo

Elas precisaram de uma boa dose de coragem para assumir sua vocação e se realizarem como cientistas. Enfrentaram o preconceito machista, vivenciaram conflitos íntimos diante de escolhas difíceis e desconstruíram o mito da mulher perfeita numa sociedade onde a figura feminina não costumava ir muito além dos limites domésticos. Hoje, com a carreira estabilizada e a competência reconhecida, todas guardam a mesma certeza: valeu a pena correr atrás do sonho. Pelo menos é o que revela a trajetória de um grupo de pesquisadoras da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, retratada na dissertação de mestrado da socióloga Maria Inez Montagner. Ao buscar o papel da mulher na ciência, ela acabou encontrando o lado humano da cientista.

“A idéia inicial era estudar especificamente a relação entre gênero e ciência, mas as entrevistas com as professoras revelaram várias questões relevantes, sobretudo as relacionadas ao trabalho doméstico, à família e ao cuidado com os filhos”, conta a socióloga. A partir daí, o trabalho, orientado pelo cientista social Everardo Duarte Nunes, do Departamento de Medicina Preventiva e Social da FCM, esmiuçou os bastidores do caminho percorrido pelas cientistas em meio às peculiaridades do mundo acadêmico. “Quando a análise girou em torno de como conciliar a carreira profissional e a vida familiar, vieram à tona os maiores conflitos de ordem pessoal, que se refletiram, inclusive, na sua vida acadêmica”, acrescenta a autora do estudo.

Para realizar a pesquisa, Maria Inez analisou o perfil acadêmico de 84 professoras de pós-graduação da FCM. Dessas, foram selecionadas 17 com experiência nas atividades de ensino, pesquisa, extensão e administração. “Todas se destacam pela significativa produção científica em suas áreas de especialidade desde a criação da FCM”, ressalta. Em seguida, a pesquisadora iniciou um minucioso trabalho de entrevistas, que resultou em mais de 300 páginas transcritas. Algumas dessas conversas duraram mais de três horas. “Durante os encontros, a formalidade inicial cedeu lugar a um clima de confidência, com momentos alternados por lágrimas e risos”, conta.

Embora várias delas sejam conhecidas nacional e internacionalmente por seu trabalho científico, Maria Inez, ao redigir a tese, decidiu usar pseudônimos. “A análise abordou diversas variáveis da vida particular das cientistas, como origem familiar, forma de ingresso na universidade, vida doméstica, preconceito no ambiente acadêmico, conflitos gerados pela dificuldade de conciliar carreira científica com rotina familiar, maternidade, casamento, escolhas difíceis, sentimento de culpa, sucesso profissional etc”, explica. Ao final, foi impossível evitar o vínculo entre pesquisadora e pesquisadas: “Apaixonei-me por todas elas”.

Os dois primeiros capítulos apresentam sólida fundamentação teórica sobre questões de gênero relacionadas ao ambiente científico, mas é no terceiro que o trabalho ganha fôlego e surpreende pela crueza dos depoimentos. “A pergunta que nos guiava era se as professoras acreditavam que por serem mulheres tiveram maiores dificuldades para conciliar a vida familiar com a carreira profissional e se foram ou não discriminadas”, diz Maria Inez. Segundo ela, embora em alguns depoimentos transpareça o sentimento de discriminação, a maioria das entrevistadas não o compreendeu como excludente. “Os discursos só passaram a ser mais contundentes quando se referiram às responsabilidades familiares que elas deviam assumir, além de todos os compromissos profissionais e sociais”.

“Quando eu estava estudando me sentia culpada porque deveria estar cuidando das crianças, mas quando estava com as crianças me sentia culpada porque achava que deveria estar estudando”, relatou uma das entrevistadas. O conflito entre maternidade e profissão, aliás, é um tema recorrente entre as cientistas, como revela este outro depoimento: “quando engravidei, a minha mãe falou: Você está louca? ‘Que hora você vai cuidar desse filho?’ Aí eu respondi: ‘Deixa comigo que eu vou me arranjando’”.

Segundo Maria Inez, todas declararam que, em algum momento de sua vida de “mães”, tiveram de optar entre os cuidados com os filhos e a vida profissional. Muitas vezes deixaram de ir a congressos no exterior. E, quando iam, ouviam que estavam sendo “negligentes” com a prole. “Fica evidente não só a cobrança que cada mulher faz a si mesma como mãe dentro do lar, mas também como elas interpretavam o olhar do outro sobre como estavam lidando com a situação”, observa a pesquisadora.

Em decorrência desse cenário, as professoras tiveram de construir verdadeiras “redes de apoio” para cuidar dos filhos. Para isso recorreram a suas mães e sogras; contrataram babás; revezavam entre mãe e babá; deixavam as crianças em creches; tinham empregadas. Até mesmo outros familiares participaram desta rede, como o avô e uma tia que fiscalizavam o cuidado; ou ainda uma sobrinha que cuidava das crianças e aproveitava a estadia na casa para poder estudar.

Apesar dos arranjos domésticos atenderem às necessidades momentâneas, muitas professoras deixaram transparecer um certo sentimento de culpa, como nesse depoimento: “Eu tive uma empregada que foi o sustentáculo da minha vida, ela já morreu, morava na minha casa. Ela que organizava tudo e também tinha uma babá que levava minhas filhas à escola, levava ao parquinho. Minhas filhas acham que eu fui uma mãe excelente, mas eu não acho”.

O trabalho também expõe as barreiras enfrentadas no casamento. “Os homens ainda esperam que as mulheres resolvam os problemas cotidianos, e não preencher essas expectativas masculinas significou para algumas professoras romper seus casamentos, enquanto para outras a saída foi renegociar a relação”, destaca a pesquisadora. As entrevistadas expressaram claramente esse quadro, como no seguinte depoimento:

Carreira – “Em casa, por exemplo, se tem comida, tem; se não tem também está bom. Ele (o marido) jamais foi de ficar me cobrando essas coisas. Mas se eu ficar no trabalho até 8 horas da noite, quando eu chegar em casa ele vai estar na frente da televisão vendo jornal, esperando eu chegar para saber o que vamos fazer. Ele não toma a iniciativa de sair, comprar uma coisa. Agora, você imagina, isso no nosso caso, que a gente se dá bem. Imagina se você tem um machão que acha que você tem de desempenhar todas as funções e chegar de noite e ainda estar cheirosinha. Não é mole, tem muito casamento que vai para o espaço”.

Em outros casos, o tema casamento serviu para evidenciar o preconceito contra mulheres que se interessam pela carreira científica. “Ao mesmo tempo em que tivemos grandes modificações na forma como se estruturam as uniões, em muitos casos ainda se continua com as velhas cobranças sobre o casamento, como parte do ideário feminino”, diz Maria Inez. “Fui entrevistada por dois professores que, dentre outras coisas, me perguntaram porque eu queria estudar se já era casada e já tinha filhos. Não lembro o que respondi, mas entrei”, relatou uma das professoras entrevistadas.

Segundo Maria Inez, algumas situações sobre o que significava ser mulher dentro da universidade podem parecer sutis, mas ganham relevo quando se tornam “leis”. “A forma de estar vestida também faz parte da representação do feminino”, observa. Na gestão do fundador e reitor da Unicamp, Zeferino Vaz, por exemplo, o uso de saia era obrigatório nos fóruns universitários, como destaca uma das entrevistadas: “Zeferino era uma pessoa inteligentíssima, mas dentro da reitoria, na época dele, mulher só podia entrar de saia”.

Atualmente, a mulher que produz ciência faz questão de assumir sua feminilidade. Segundo Maria Inez, o jaleco branco, o cabelo curto ou preso e os óculos deram lugar a mulheres bem-cuidadas. “Podemos perceber que esse modelo feminino, que se preocupa com o belo e o saudável, foi revelado nos depoimentos”, diz. Elas gostam de ir a cabeleireiros, esteticistas e cozinhar, como destacou esta entrevistada: “De dois anos para cá não faço mais nada científico no domingo. É o dia que dedico para mim, é o dia que vou ao cabeleireiro, é o dia que viro ‘perua’, com todo direito”.

Ao finalizar o trabalho, Maria Inez diz ter constatado uma característica comum e freqüente nos relatos, que revela nas trajetórias destas mulheres um componente de ousadia e persistência que a pesquisadora chamou de “Síndrome de Ester”. Segundo ela, Ester, uma personagem bíblica, apesar de judia tornou-se rainha por ter-se casado com o rei da Pérsia. Porém, o primeiro ministro, Hamã, elaborou um plano para exterminar os judeus do reino. “Ela teve de escolher entre ficar quieta e defender sua própria vida, ou assumir que era judia e defender seu povo”, destaca. De acordo com as escrituras, a personagem acreditou em seus ideais, venceu as lutas e até hoje é lembrada na Festa de Purim. “As professoras entrevistadas por mim também acreditaram na força de seus ideais e na possibilidade de que, se eles fossem realizados, muitas outras pessoas também se beneficiariam”.

Do Portal da Unicamp

(R.A.)