Centro de tratamento de doenças mentais em Lins promove inclusão

Cais Clemente Ferreira aposta na diversidade de ações para a reinserção social dos pacientes

qui, 01/01/2009 - 12h02 | Do Portal do Governo

Ainda não são 8 horas, mas Lauro Navas Urbano, de 69 anos, já aguarda há algum tempo, em frente à Oficina de Trabalhos Experimentais, por mais um dia de aula. A expectativa é grande. “Quero muito ir para a fábrica. Não vejo a hora de acabar esse ano”, desabafa. Seu empenho é visível. Participa das atividades de capacitação para o trabalho com grande interesse e, ao ser questionado pela professora sobre direitos e deveres, enumera todos, sem hesitar.

Seu Lauro, como é mais conhecido no Centro de Atenção Integral à Saúde (Cais) Clemente Ferreira, em Lins, não está se preparando para o primeiro emprego, mas para dar um passo que representa mais do que a iniciação no mundo profissional. Trata-se do retorno formal a ele e o resgate da sua autonomia. Portador de esquizofrenia, passou por outras instituições antes de chegar ao Clemente Ferreira, há oito anos. Considera a melhor coisa que lhe aconteceu desde que adoeceu. “Agora estou bem, graças a Deus”, julga.

Por intermédio do centro, está prestes a ser admitido como funcionário da Bertin Produtos Pet, divisão do Grupo Bertin que fabrica produtos para animais. A Oficina de Trabalhos Experimentais é um projeto de inclusão profissional desenvolvido pelo Cais em parceria com o Grupo Bertin e a Adetec Lins – Agência de Desenvolvimento Econômico e Tecnológico de Lins. Do primeiro grupo participante da proposta, 12 pessoas se formaram e foram contratadas. Entre elas estão Rosa, Jocione, Geraldo, Catia, Gelson e Paulo, moradores do Cais. Hoje, têm carteira assinada e gerenciam seus rendimentos e benefícios. “A partir disso, passaram a ter certa autonomia e independência financeira”, afirma a diretora-técnica de departamento de saúde do Clemente Ferreira, Sílvia Helena Tejo Marcolino. “É o nosso maior objetivo”, explica.

O Cais Clemente Ferreira é uma instituição estadual, vinculada à Secretaria da Saúde, com 53 anos de existência, dos quais 40 dedicados à saúde mental, para atendimento a diagnósticos de transtornos psiquiátricos, como o bipolar, esquizofrenia e depressão, entre os mais comuns, e comprometimentos neurológicos (retardo mental, demência, autismo, senilidade, etc.). A mudança na política de Estado com vistas à humanização do atendimento e reabilitação social, ocorrida em 1983, deu início ao processo de reestruturação que propiciou a sua linha atual de trabalho, pioneira em práticas de inclusão social.

De acordo com a diretora, o Clemente Ferreira caminhou da reversão do modelo centrado na internação para o de intensificação da atenção extra-hospitalar. “Hoje, contamos com equipes comprometidas e envolvidas com esse objetivo e que continuam em busca de novas alternativas de terapia e reinserção, sempre respaldadas nos parâmetros legais e na literatura científica”, informa Sílvia.

Alta e carteira assinada – Seu Lauro tem uma movimentada história de vida, que a aparência serena e elegante não denuncia. “Nasceu em Jaú e morou em São Paulo, onde fez curso de encanador, ofício que o levou a montar uma firma e a assumir contrato de obras. Casou-se, teve dois filhos, ficou viúvo e adoeceu quando estava na plenitude da capacidade produtiva. “Comecei a ficar atrapalhado”, descreve.

Daí em diante, forçosamente, teve de abrir mão do trabalho. A primeira internação se deu em Jaú. Chegou ao Clemente Ferreira transferido de outra instituição cujos procedimentos, julga, não o teriam ajudado. “Se tivesse ficado lá, acho que estaria morto”, acredita.

A motivação para a luta contra a doença estava no trabalho e foi em Lins que teve oportunidade para descobrir. “No início, seu Lauro vivia recluso, sem ânimo. Até que um dia, ao observar o processo de recapeamento do asfalto no próprio Cais, pediu para ajudar”, conta Sílvia. Foi o início da sua recuperação. Ele passou a exercer várias atividades, a participar das terapias ocupacionais e, além disso, tornou-se referência para o pessoal responsável pelos serviços de hidráulica das unidades, com base nos seus conhecimentos. “Eles sempre vêm me pedir orientação”, orgulha-se.

O momento da alta hospitalar está cada vez mais próximo. Faz algum tempo, teve chance de morar na cidade, numa Residência Terapêutica, outra proposta do Cais para a inclusão social dos pacientes, mas não se adaptou devido a três medicamentos que tomava na ocasião. “Eles me deixavam com dificuldade de fazer as coisas”. Agora, se sente bem.

A vaga na Bertin, considera, vai ser um recomeço. “O pessoal daqui conseguiu a minha aposentadoria, e já estou recebendo. “Não penso em morar com a família, eles já têm a vida deles. Se eu tiver nova oportunidade de residir na cidade vou ficar muito feliz”, revela.

Inclusão para todos – A Oficina de Trabalhos Experimentais é a mais recente novidade da linha de atuação do Cais. Sua criação, assim como a de vários outros projetos desenvolvidos, foi impulsionada a partir do pedido de um interno da unidade, Geraldo Leite de Freitas, que queria voltar à vida profissional. “Ele sempre quis trabalhar. Dizia que precisava sustentar a casa”, conta a diretora. Seu desejo fez com que a equipe do Clemente Ferreira fosse atrás de espaço no mercado de trabalho para os internos e abraçasse a causa pela inclusão de portadores de esquizofrenia e transtorno bipolar na Lei de Cotas para Pessoas com Deficiência, que atualmente não os contempla.

“Com a parceria que realizamos, provamos que pessoas com diferentes tipos de deficiências mentais podem exercer uma série de atividades profissionais. Aqui em Betim há três, totalmente integrados”, ressalva.

Em ação na fábrica, Freitas é prova disso. Ele fala sobre seu novo dia-a-dia. “Com o meu salário posso pagar a pessoa que ajuda em casa”. Faz referência à moradia que adquiriu por causa da Residência Terapêutica, que compreende a ocupação, pelos pacientes, de casas comuns, para que desenvolvam sua autonomia.

Há três no município de Lins, vinculadas ao Programa de Volta para Casa, em parceria com o município, e quatro na área geográfica da unidade, fora da estrutura hospitalar. Nelas, vivem 29 pessoas de ambos os sexos, sob acompanhamento dos profissionais da instituição, porém com menor dependência e mais condições de exercer suas identidades pessoal, cultural e social.

Freitas já habitava a Residência Terapêutica quando ingressou na oficina. O vínculo empregatício, segundo Sílvia, era o que faltava para a sua alta hospitalar. “A partir do momento em que são inseridos no mercado de trabalho, começam a se desvencilhar da instituição”, explica. Nesse caso, eles têm o atendimento regular no CAPS 1, ambulatório direcionado à área da saúde mental, localizado no centro de Lins, e o direito assegurado de permanecer na moradia, com aluguel e conta de luz mantidos pelo município, de acordo com convênio realizado.

Ambiente doméstico – Dois dos alunos do novo grupo da oficina, Orides e Alcídio, também moram em Residência Terapêutica, dentro da área do Cais. Com eles, na mesma casa, estão Benedito, Firmino, Jesus e Jocimar. Nela, dividem as tarefas comuns, cuidam das suas coisas pessoais e têm rotina mais independente do que outros internos do hospital. Apenas a alimentação não é preparada na casa, mas é servida lá, após ser retirada por eles no refeitório.

Uma das enfermeiras que os acompanha, Maria Lúcia, costuma promover assembléia semanal para definir as incumbências de cada um. “Se deixar, o Ditinho faz tudo por todos”, diz, referindo-se ao Benedito, que se apresenta como o mais comilão do lar. É ele também quem faz as honras da casa e apresenta todas as suas dependências: sala, dois quartos, banheiro, cozinha, área de serviço, quintal e um jardim de flores bem cuidado.

A enfermeira informa que apenas supervisiona as tarefas do dia-a-dia, assim como a administração da medicação, feitas por eles mesmos. “Eu os ajudo quando necessário”, comenta.

A diretora técnica de divisão da instituição, Marli Cristina Venâncio, explica o procedimento: “Esses moradores estão sendo trabalhados para readquirirem autonomia. Por exemplo, de acordo com a possibilidade são incentivados a usar transporte coletivo, administrar a própria medicação e lidar com bens de consumo”, explica. Segundo ela, em muitos casos o processo é lento, devido aos longos anos de internação, mas os resultados de autogestão têm sido bastante satisfatórios.

Na casa vizinha, a mesma finalidade leva à divisão do espaço por Fátima, Sassá, Teresinha, Dorinda e Ana, que aprendeu a pintar no Clemente Ferreira e tem se destacado por isso. Diz que gosta muito de criar flores, lua e sol com as tintas. Ela exibe orgulhosa uma de suas telas florais, premiada num concurso e escolhida como ‘logo’ da campanha de luta antimanicomial.

A colega Fátima também fica satisfeita ao mostrar o seu caderno de escola, preenchido com contas e letras caprichadas. Enquanto isso, Terezinha e Sassá se distraem com a TV. Contam que gostam muito de assistir às novelas. Mas, ao ver o fotógrafo em ação, Sassá é a primeira a pedir para ser retratada.

Lar Doce Lar

“Até que enfim!” Exclama a sorridente Rosa Rocha, ao apresentar o seu apartamento. Estava à espera, na companhia da terapeuta ocupacional Cristiane Rodrigues, para quem mostra o caderno da escola. “Tirei o uniforme porque queria tomar banho e ficar à vontade”, diz, depois de um dia de trabalho. Assim como seus colegas que fizeram parte da primeira turma da Oficina de Trabalhos Experimentais, foi contratada pela Bertin e cumpre expediente das 9 às 17 horas. Também foi alfabetizada.

Além disso, passou a participar do Projeto de Autonomia e Inclusão da unidade Lar Abrigado, o Lar Doce Lar, modalidade de reabilitação que dispõe de cinco apartamentos independentes, com sete moradores. Eles estão em preparação para viver nas Residências Terapêuticas.

Rosa enumera os passos da sua rotina. “Acordo cedinho, tomo o remédio, um bom banho, café e sou acompanhada para pegar o ônibus”, explica com satisfação. Feliz com o trabalho na fábrica planeja como vai gastar o salário. “Quero comprar um rádio com CD para ouvir música”. Seus vizinhos e amigos, Natalina e Sérgio, aparecem à porta. Eles são namorados, desde que se conheceram no Centro de Atenção Integral à Saúde (Cais) Clemente Ferreira. Sérgio é falante e fã da instituição. “Faço de tudo aqui: teatro, cuido do lixo reciclável, participo do coral… todo mundo gosta de mim”, gaba-se. De pouca conversa Natalina, ao seu lado, concorda com ele e sorri ao dizer que também gosta dos afazeres.

Ambos fazem questão de mostrar os seus quartos, com os pertences pessoais. Sérgio apresenta antes o quarto do irmão. Luiz Augusto Galvão é mais sério e está concentrado nas lições, embora esteja com o rádio ligado bem ao lado. Ambos chegaram juntos ao Clemente Ferreira, sem família localizada. Hoje, já mantêm contato.

Fabiano, Aguinaldo e Fausto compõem o projeto-piloto do Lar Abrigado Neurológico Infanto/Juvenil. Embora necessitem de mais atenção do que seus colegas da Residência Terapêutica de adultos, por enfrentarem dificuldades de ordem motora, têm demonstrado que a alternativa é uma opção a ser adotada definitivamente.

Segundo o acompanhamento realizado na instituição, após seis meses de moradia e convivência, conquistaram individualidade e independência, com a prática diária de atividades esportivas, pedagógicas, de lazer e de organização no ambiente doméstico. A proposta é criar outros espaços protegidos (com atenção de profissionais durante todo o período).

Serviço

Centro de Atenção Integral à Saúde Clemente Ferreira
Estrada Lins – Guaiçara – km 4
Tel. (14) 3522-6222 – ramal 2007
E-mail nucleoadministrativo@ig.com.br

Simone de Marco – Da Agência Imprensa Oficial