Wagner e o cinema na nova obra de Gilberto Mendes

O Estado de São Paulo - Quinta-feira, dia 27 de julho de 2006

qui, 27/07/2006 - 11h20 | Do Portal do Governo

Estado acompanhou compositor no ensaio de Alegres Trópicos, que estréia hoje

João Marcos Coelho

Porque exige a mediação do intérprete para existir, a música é não só a mais etérea mas também a arte de mais complexa realização. O compositor fica à mercê de terceiros, que nem sempre dedicam à obra o melhor de seu talento e esforço. Afinal, quase sempre a música contemporânea serve para atenuar a má consciência de músicos e platéias, que pensam poder pagar o penoso tributo ao novo para poder fruir sem culpa o antigo e consagrado. Mas quando músicos, cantores e maestro mergulham inteiros na criação de uma partitura inédita na presença do compositor – aí, e só aí, a mágica da criação musical se faz. Foi o que aconteceu anteontem, no primeiro ensaio da peça Alegres Trópicos: Um Baile na Mata Atlântica, de Gilberto Mendes, que estréia no concerto de hoje à noite na Sala São Paulo.

Aos 83 anos, Gilberto Mendes parecia um menino, esfregando as mãos de ansiedade, enquanto sentávamos em frente à partitura. Não foi um ensaio burocrático. Depois de uma leitura de toda a obra, que prevê coral além da orquestra, Neschling passou a desossar praticamente cada compasso. E Gilberto? Encantado de contemplar e ouvir pela primeira vez a composição que o ocupou nos últimos meses. Há duas semanas me enviou uma versão que ele mesmo fez em computador (“Estou aprendendo a mexer com esta coisa”). Quando terminou a primeira leitura, dissemos quase ao mesmo tempo: como o timbre é fundamental, sobretudo nesta música. “Esta música, acredite, é weberniana, existe nela um eixo central que é a melodia de timbres.” E onde você aprendeu a orquestrar de modo tão magnífico, inclusive colocando o coro não como corpo estranho mas como um naipe a mais na massa orquestral? “Com o Wagner da passagem do penúltimo para o último ato do Crepúsculo e com os alemães que foram para Hollywood nos anos 30 e fizeram cinema. Portanto, para mim, Wagner é o inventor da música de cinema”, responde, enquanto sorve sua música sendo executada.

Este caldeirão que sai de Wagner passa por nomes lendários que são ídolos confessos do compositor. No cinema: Alfred Newman (1901-1970), autor de sua canção preferida, The Moon of Manakoora; e Friedrich Hollaender (1896-1976), o autor da música de O Anjo Azul, com Marlene Dietrich. No jazz dos anos 30, feito de música para dançar, Gilberto mergulha de cabeça em nomes como Duke Ellington (ouvem-se ecos do toque do Duke no piano de Alegres Trópicos) e Tommy Dorsey (várias vezes ele junta trombones e trompas em puríssimo Dorsey).

Naomi Munakata, responsável pelo excelente coro da Osesp, pergunta-lhe por um sustenido que falta numa nota sol no compasso 25. Ele concorda. Logo depois, no intervalo, um contrabaixista pergunta-lhe por uma pausa que deveria existir mas não está anotada na parte dele. E assim por diante. É um trabalho artesanal, minucioso, pôr de pé uma obra tão magnífica quanto esta. Ela é agradável de ouvir mas não é banal. Parece tonal, mas de fato é politonal, usa e abusa das séries dodecafônicas estabelecidas por Schoenberg, chega ao atonalismo até – e faz de um simples arpejo a espinha dorsal de um tributo-denúncia eloqüente à Mata Atlântica (tributo à sua beleza; denúncia à sua destruição pelo homem). “Parti de uma história infantil de minha mulher Eliane. E como ando nos últimos tempos encantado com o mundo dos animais, achei interessante apresentá-los com seus nomes científicos em latim”. Além disso, ele cita dois poetas de sua querida Santos: o velho Vicente de Carvalho (“mar, belo mar selvagem”) e o pós-moderno Flávio Viegas Amoreira (“chuva no mar é desejo”).

“Wagner fez uma música meio erudita, meio popular”, conta-me em tom de segredo. Espalhado por Neschling em voz alta, no palco, quando pede para orquestra e coro repetirem determinado trecho: “Toquem como se fosse o início de um show da Globo”. A música de Gilberto Mendes, sobretudo este “baile”, consegue o milagre de nos tocar física e espiritualmente sem ser descartável. Música solidamente construída. Ou seja, é música que parece, mas não é. “Shall we dance? Invitation à la danse/Invitation á la valse/Vamos dançar?”, convida o coro. Impossível recusar apelo tão sedutor.

(SERVIÇO)Osesp. Sala São Paulo (1.501 lugares). Praça Júlio Prestes, s/n.º, Centro, 3337-5414, metrô Luz. 5.ª e 6.ª, 21h. R$ 25 a R$ 79