Voluntários contra a aids

O Estado de S. Paulo - São Paulo - Quarta-feira, 1º de dezembro de 2004

qua, 01/12/2004 - 10h29 | Do Portal do Governo

54 brasileiros saudáveis participam de testes de uma vacina anti-HIV, numa tentativa de frear a epidemia mundial

Alessandro Greco

Cláudio Ramires tem 33 anos. É solteiro e trabalha como voluntário do Grupo pela Vida, organização não-governamental que ajuda pessoas que convivem com o HIV, o vírus causador da aids. Hoje, Dia Mundial de Combate à Aids, ele e seus companheiros da ONG reforçam a esperança na busca de uma cura para a epidemia. E Ramires vai além.

Junto com outras 53 pessoas, ele integra um grupo no Brasil que participa de um estudo mundial em busca de uma vacina anti-HIV. Estima-se que 600 mil brasileiros convivem com o vírus atualmente, sendo que mais de 300 mil deles desenvolveram a doença. Alguns são voluntários por acreditar que o mundo será melhor se houver uma forma de brecar a epidemia, que infecta diariamente 16 mil pessoas em todo o mundo. Outros, por ver de perto o sofrimento causado pela doença.

‘Temos de fazer algo. Tenho vários conhecidos que morreram da doença’, diz Ramires, que já tomou duas doses da vacina e faz questão de mostrar a cara para que as pessoas vejam que não tem nada demais. ‘O cabelo não cai, não acontece nada. Aliás, dói mais a vacina antitetânica do que a anti-HIV’, diz ele. A vacina anti-HIV testada, produzida em laboratório, ao contrário de outras, não contém o vírus HIV para inoculação. Não há, portanto, nenhuma possibilidade de os voluntários serem infectados. O que está sendo avaliada, nesta fase I, é a segurança da vacina e a reação imunológica das pessoas.

O estudo está sendo feito em três centros, dois em São Paulo (Centro de Referência e Treinamento DST/Aids e Universidade Federal de São Paulo) e um no Rio (Projeto Praça Onze da Universidade Federal do Rio de Janeiro). Cada um tem 18 voluntários – todos absolutamente saudáveis e HIV negativo -, um número pequeno se considerada a quantidade de pessoas que se candidataram para testar a vacina.

Só a Unifesp recebeu mais de 2 mil questionários pela internet de pessoas interessadas em participar da pesquisa. Desses, 945 preencheram o cadastro com dados pessoais. ‘Essas pessoas são seres humanos extraordinários’, afirma o médico Ricardo Palacios, coordenador do estudo pela Unifesp. ‘São altruístas mesmo. Geralmente são doadores de sangue ou voluntários em outras instituições’, completa.

No Brasil, a legislação proíbe qualquer tipo de remuneração pelo trabalho voluntário. Os voluntários recebem somente uma ajuda de custo para transporte e alimentação, fazendo do trabalho uma ação de solidariedade irrestrita. A.R., de 40 anos, é um desses. ‘Sempre li muito sobre o assunto e acredito que ficar sentada esperando algo acontecer não dá certo. Se posso ajudar, por que não participar?’, diz ela, que já fez trabalho voluntário e participa do estudo pela Unifesp.

B.G., de 23 anos, que é voluntário pela mesmo centro, diz que participa do estudo por ter esperança de que o projeto dê certo. ‘E para contribuir para o avanço nas pesquisas contra o mal que pode muito bem ser considerado como ‘mal do final do século 20.’ Todos os voluntários foram selecionados depois de uma série de exames – não podem ser hipertensos, por exemplo – e de entrevistas com psicólogos.

Cerca de 250 pessoas foram ao CRT DST/Aids se candidatar a voluntário na pesquisa – selecionados a partir de mais de 400 ligações telefônicas. ‘Tivemos inclusive gente de outros Estados’, comenta o médico José Valdez Madruga, coordenador clínico do estudo no centro. ‘Como é necessário vir algumas vezes ao local durante o estudo, descartamos as pessoas de outros Estados’, lamenta ele.

Difícil decisão

C.X., cabeleireiro, de 22 anos, esteve ontem no centro para tomar uma dose da vacina. ‘Fiz muita besteira quando era adolescente. Até pouco tempo não queria fazer teste de HIV. Fiz, deu negativo e decidi ser voluntário’, conta. Encarar a vacina não parece ser um problema para ele, que conversou com o Estado pouco antes de tomar a primeira dose. ‘Faço aquilo em que acredito. Não me importa a opinião alheia’, diz ele que, como Ramires, percebeu uma reação estranha de amigos e colegas a quem contou que estava participando de testes que poderiam levar a uma vacina anti-HIV.

‘As pessoas acham que se você faz parte do estudo é porque é HIV positivo’, comenta C.X. ‘No começo, meus amigos não entenderam. Depois expliquei direitinho e inclusive o dono do salão em que trabalho me deu todo o apoio’, completa.

Os 54 voluntários brasileiros não estão sozinhos neste estudo. Os resultados daqui se somarão aos experimentados por um grupo de aproximadamente 435 pessoas espalhadas por 25 centros na América do Norte, América do Sul, Caribe, África e Sudeste da Ásia. A vacina foi desenvolvida pelo laboratório Merck em colaboração com a Rede de Ensaios de Vacinas anti-HIV (HVTN) e a Divisão de Aids, dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos.

O Brasil tem também um outro estudo em curso, junto com a França: uma vacina terapêutica para pessoas portadoras de HIV. Há dois dias, o grupo liderado no Brasil por Luiz Claudio Arraes, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), publicou o resultado do trabalho feito com 18 pessoas – também em estudo fase I – na revista Nature Medicine. Os resultados preliminares foram promissores, diminuindo a carga viral em um paciente em 80%.

Atualmente, o HVTN testa dez vacinas em todo o mundo, segundo o Centro de Informação de HIV da Universidade da Califórnia São Francisco (UCSF). Mas, como todo estudo, as vacinas têm ainda alguns anos de pesquisa pela frente. E várias chances de fracassarem, antes de se tornarem uma possibilidade real.