“Violência urbana crescente é um mito”

Valor Econômico - Segunda-feira, 26 de fevreiro de 2007

seg, 26/02/2007 - 11h58 | Do Portal do Governo

Do Valor Econômico

A criminalidade no Brasil não vive uma explosão. Ao contrário, experimenta um ligeiro recuo. Crimes como o do menino João Hélio Fernandes – arrastado por um carro roubado até a morte pelas ruas do Rio – representam a exceção, e não o padrão, do que acontece no país. O narcotráfico não é comandado no Brasil por poderosas organizações criminosas, mas é uma atividade pulverizada. E o PCC é poderoso dentro das cadeias paulistas, mas não exibe a mesma forma fora delas. O conjunto de afirmações que vão em sentido contrário ao que se tem dito nas últimas semanas foi desfiado pelo ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo, Marco Vinicio Petrelluzzi, em seu gabinete no Ministério Público paulista.

 

Hoje Petrelluzzi acompanha como espectador a questão da violência urbana. Como procurador do Estado, sua função atual é analisar os pedidos de habeas corpus que são impetrados no Tribunal de Justiça. Seus três anos como secretário foram especialmente agitados. Petrelluzzi geriu o sistema de segurança pública em um momento paradoxal.

Em 1999, seu primeiro ano no cargo, foram registrados 12,8 mil homicídios, o recorde na história do Estado. Era o começo do segundo mandato de Mário Covas, a quem Petrelluzzi seguia politicamente desde os anos 80. A partir deste pico, a criminalidade em São Paulo começou a trajetória de queda que não se deteve até agora. Ao suceder Covas em 2001, Geraldo Alckmin o manteve no cargo.

Petrelluzzi deixou o governo Alckmin em fevereiro de 2002, para concorrer, sem sucesso, a deputado federal, com a gestão abalada por três crimes de impacto nacional: o seqüestro do publicitário Washington Olivetto, o assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel e a morte, em circunstâncias nebulosas, de Fernando Dutra Pinto, o seqüestrador do empresário Silvio Santos, que estava preso em São Paulo em um Centro de Detenção Provisória.

“Nem minha mãe acredita nisso, mas Dutra Pinto morreu de causas naturais. Ele teve pneumonia, foi levado à Santa Casa de Misericórdia, recebeu tratamento inadequado, voltou para a cadeia e morreu. O caso foi apurado, a meu pedido, por um legista da secretaria e pela Comissão Teotônio Vilella, que é a comissão mais petista que eu conheço, que afirmaram a mesma coisa”, diz Petrelluzzi, para quem “ainda não estão claras as circunstâncias da morte de Celso Daniel e o seqüestro de Olivetto não se deu em função de problemas na segurança pública”.

Em sua página eletrônica, a Comissão Teotônio Vilela afirma que Dutra Pinto “morreu em conseqüência de tortura”. O seqüestrador foi agredido na cadeia três semanas antes da morte e teve um ferimento nas costas, não tratado. Segundo declarou à época a secretaria de Administração Penitenciária, Dutra Pinto teria se envolvido em uma briga com um agente penitenciário.

A afirmação de Petrelluzzi de que o Brasil não vive nos últimos anos uma explosão de violência urbana pode ser, em parte, sustentada pelas estatísticas. Segundo dados do Ministério da Justiça, o índice de crimes violentos (homicídios dolosos, lesão seguida de morte e latrocínio) no país recua desde 2002, mas de forma desigual: em três capitais há queda em todos os anos: São Paulo (onde recuou de 51,3 ocorrências por 100 mil habitantes em 2001 para 25 em 2005), Rio Branco e Palmas. Em Natal e Curitiba, o índice subiu continuamente. No Rio de Janeiro, os índices de violência permanecem estáveis nos últimos três anos em que há estatísticas disponíveis, até 2005. A seguir, os principais trechos da entrevista ao Valor:

Valor: Mais uma vez um crime chocante coloca o tema de segurança pública em pauta. Mudanças legais podem levar ao estancamento da violência urbana crescente?

Marco Vinicio Petrelluzzi: Discordo da premissa. Não há violência urbana crescente. Mesmo que se admita que no Rio os números são estáveis, não dá para concordar que estamos vivendo uma explosão de criminalidade. No principal Estado, São Paulo, você teve uma queda nos últimos oito anos de mais de 50%. Mas o que aconteceu foi um aumento de crimes com mais violência gratuita, uma banalização sob certo aspecto de algumas condutas violentas.

Valor: Mas há a sensação de insegurança não diminuiu.

Petrelluzzi: Basta alguém ser assaltado que existe uma espécie de revolta contra o sistema de segurança, independente do que esteja sendo feito. Nós não conseguimos entender que o crime é um fato da sociedade. O que agravou isso é que 20 anos atrás não éramos bombardeados com informação. Hoje você é avisado na hora. Um ônibus é incendiado na Zona Leste de São Paulo e quem mora na Zona Sul tem a impressão que aconteceu na porta de sua casa.

Valor: Seria de se esperar então que o mundo inteiro vivesse uma sensação de insegurança.

Petrelluzzi: Mas vive. Estive na Alemanha em 2002. Estava tendo a campanha eleitoral lá e a segurança foi um dos grandes temas do debate. Em algumas sociedades, isto é transformado em uma agenda positiva, como em Nova York nos anos 90. Havia um acordo para amplificar tudo que se fazia de positivo em relação ao tema. No Rio, a mobilização de organizações não governamentais produziu algum resultado em um ou outro aspecto. Em São Paulo, os índices de violência começaram a declinar na minha gestão, em 2000. Mas cheguei a ser processado, acusado de maquiar índices, porque não havia este acordo social. As pessoas não admitiam que as incidências estavam caindo. Depois isto foi comprovado.

Valor: Mesmo com a queda, o nível de violência no Brasil ainda coloca o país como um dos bolsões mundiais de criminalidade. Não seria de se esperar um retorno aos patamares que o país detinha até a década de 70?

Petrelluzzi: Violência é uma área multidisciplinar. Para se fazer políticas públicas, o problema tem que ser atacado de forma estrutural. No Brasil, as questões sempre foram discutidas pelo aspecto conjuntural. E vivemos em cima de mitos. Dizer que a lei brasileira endureceu nos últimos anos é um mito. Há fatores alheios à qualquer ação administrativa direta que influem na criminalidade. No Brasil, há um processo de envelhecimento médio da população. Para mim, isto é uma das explicações para a queda do homicídio.

Valor: Então a queda de homicídios observado em São Paulo e outros Estados não foi fruto de políticas focadas.

Petrelluzzi: Não. Apenas em parte. Aqui em São Paulo existe hoje uma agenda positiva, com organizações não governamentais mobilizadas para atuar, há um esforço coletivo.

Valor: O senhor assumiu a secretaria em 1999, o ano recorde de violência no Estado. Porque houve esta subida em espiral na taxa de homicídio nos primeiros anos do governo Covas?

Petrelluzzi: O aumento da violência foi linear ao longo dos anos 90. Isto se explicou por um processo de aumento de ocupações irregulares na capital, uma ausência de solução de conflitos de toda ordem. O homicídio, na maioria dos casos, é um delito praticado por pessoas que não são reincidentes. Não é ação de bandido ou de crime organizado. Na São Paulo dos anos 90, a maioria dos homicídios eram crimes ocasionais. Havia um alto componente de presença de armas de fogo e álcool, a grande droga da violência. A partir de 1999, intensificou-se no Estado a atuação das igrejas, das ONGs, até mesmo da mídia contra a violência. Nosso mérito foi identificar a tendência e abrir as portas para que houvesse sinergia da sociedade com o governo. Fechamos bares. A apreensão de armas de fogo passou de 3 mil por semestre, aproximadamente, para algo como 10 mil. E não houve concessão em relação com ações policiais fora da legalidade. Depois que eu saí (em 2002), isto mudou, houve muito mais condescendência com isso.

Valor: Como o senhor avalia a gestão que o sucedeu? Não houve continuidade?

Petrelluzzi: Todo o sistema que foi criado de análise de desempenho policial, regime de metas, participação da sociedade civil continuou. O último secretário (Saulo de Castro Abreu Filho) praticamente não editou medidas novas. O que mudou, indiscutivelmente, foi a tolerância em relação ao uso da força pela polícia. Isto começou com o episódio da Castelinho (morte de 12 presos em suposta tentativa de fuga, em rodovia paulista, em março de 2002), logo que eu saí. Tinha que ser investigado e o secretário entendeu que não. Logo em seguida a este episódio, o secretário extinguiu um programa, o Proar, que havia sido criado ainda no governo Fleury. Era um programa que afastava para avaliação psicológica todo policial envolvido em morte. E sabe porque havia resistências a este programa? Porque a avaliação mudava a escala de trabalho do policial e ele perdia as ocasiões de fazer o ‘bico’ (trabalho paralelo como segurança privado). A bronca maior era essa. O índice de mortes por ação policial subiu muito, houve uma grita das entidades de direitos humanos e só aí houve um recuo, no penúltimo ano. Com um agravante: a queda importante no número de prisões, com o aumento das mortes. Era uma filosofia de endurecimento que jamais foi negada por ele.

Valor: Houve comprometimento de eficiência?

Petrelluzzi: Na medida em que você diminuiu o número de prisões e aumentou o de mortes em combate…

Valor: A polícia em sua gestão estava então com mais limites para agir?

Petrelluzzi: Neste assunto, você tem que comparar o número de mortes por ação policial e número de prisões efetuadas. Mais prisões com maior número de mortes indica que se age dentro de certos parâmetros. Houve muitas mortes, mas muitas prisões no tempo em que fui secretário. O número de presos passou de 60 mil para 100 mil aproximadamente.

Valor: O senhor não relacionou este aumento de prisões como fator para redução de homicídios. Por que?

Petrelluzzi: As prisões reduzem outros delitos, mas não homicídios.

Valor: O latrocínio é uma modalidade de delito muito rara para que não haja políticas preventivas a ele?

Petrelluzzi: O latrocínio, felizmente, é um crime raro. Sua incidência é muito baixa. Tão pequena que é difícil avaliar se está aumentando ou diminuindo. Com um ou dois casos a mais, aparece um pico. O latrocínio fere a lógica. O ladrão sabe que, se matar, corre mais risco de ser preso. O caso do Rio é um latrocínio claro do ponto de vista jurídico, mas também não deixa de ter um aspecto circunstancial. Não houve premeditação no homicídio. O que ocorreu no Rio é uma exceção, não um padrão. São situações excepcionais que motivam propostas contraproducentes na sociedade. A diminuição da maioridade penal, sempre lembrada nestas horas, é um caso. Esquecem que a medida atingirá quem cometer qualquer tipo de delito, mesmo leve, como um furto de toca-fitas. Um ladrão de toca-fitas na penitenciária com 16 anos está liquidado. Ou recrutado para crimes de pior espécie.

Valor: E como proceder com menores como o envolvido na morte de João Hélio Fernandes?

Petrelluzzi: Acho que em relação à maioridade penal poderia haver brechas para exceções, um espaço para discricionaridade. Tratar de maneira excepcional casos excepcionais. Poderia se submeter o adolescente a uma junta que avaliaria se ele tinha ou não capacidade para responder pelo que fez. O que não se pode é tratar a exceção como regra. Eu tive essa idéia à frente da secretaria, mas ela não foi adiante. Quem é contra baixar a maioridade, é contra em qualquer circunstância. Quem é a favor de baixar a maioridade, acha esta proposta insuficiente. Neste caso, o meio-termo desagrada todos.

Valor: Alguns especialistas sustentam a tese que a violência em São Paulo recuou, em relação aos do Rio, porque no caso fluminense há uma disputa territorial entre quadrilhas pelo controle do crime organizado, ao passo que em São Paulo o PCC prevaleceria sobre outros grupos, diminuindo mortes por guerras de quadrilha. Qual sua opinião?

Petrelluzzi: No que se refere à violência no Rio, este raciocínio é verdadeiro. Grande parte das mortes que ocorrem no Rio se devem a guerras por controle territorial. Falo pela experiência que tive na secretaria, dialogando com as autoridades de lá na época. No Rio, o mercado consumidor de drogas é muito concentrado e cada espaço ali vale muito dinheiro. Em São Paulo, o PCC é uma organização criminosa, com presença muito forte na cadeia, mas que não comanda o crime organizado.

Valor: As ações que ocorreram em São Paulo no ano passado não mostram que o PCC possui ramificações fora da cadeia?

Petrelluzzi: Mostram que o PCC é forte e ousado, mas não único. O crime em São Paulo é muito mais espraiado. Não há necessidade de disputa territorial. Em São Paulo não há um único ponto consumidor de drogas, há vários. Qualquer ponto de venda de drogas em São Paulo pode ser um bom negócio para o bandido. No Rio, o criminoso tem que disputar. Há muitos mitos. Por exemplo: o narcotráfico de modo geral, é desorganizado e pulverizado. Não existe o barão da droga, que fica no asfalto, comandando as ações por “laptop”. A droga chega no Brasil em um esquema de sacoleiro. Aliás, não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Nos Estados Unidos, por mais que apreendam, não conseguem impedir a entrada de 90% da droga que vai para lá. E porque entra? Porque a produção é concentrada, mas a distribuição é pulverizada. Isto pelos lucros que gera. Para US$ 1 mil que você compra de droga na Colômbia ou na Bolívia, você vende por US$ 20 mil no Brasil. Nos Estados Unidos, vende por US$ 60 mil. No Japão, por US$ 200 mil.

Valor: Se o PCC não tem esta presença toda, como gerou todos os episódios de violência vistos em São Paulo em maio passado?

Petrelluzzi: Não digo que o PCC não tem presença, mas não é dominante. Não desprezo o PCC, eles representam um problema sério de criminalidade. Mas se você observar, as ações do PCC ocorreram próximas de saídas de cadeia, como Dia das Mães ou dos Pais, por exemplo. O que reforça a certeza de que a presença do PCC é forte mesmo dentro das cadeias. Isto se deve inclusive a um equívoco que o governo de São Paulo cometeu e que precisa assumir. Houve um determinado momento em que havia seis ou sete facções conhecidas dentro do sistema prisional. A administração presidiária, querendo diminuir os conflitos entre as facções, começou a separá-las, na melhor das intenções. Isto facilitou que as facções se consolidassem. Tirou do PCC seu predador natural. Antes disso eles se matavam com requintes.

Valor: O que o senhor acha das propostas de mudança legislativa. É necessário reformar a execução penal no Brasil?

Petrelluzzi: Sem dúvida. A progressão da pena com um sexto de cumprimento é inaceitável. Isto surgiu na lei de execução penal e provocou uma reação que produziu a Lei dos Crimes Hediondos, que foi para o exagero oposto. O Supremo acabou dizendo que ela não tem validade na questão da progressão. As duas posições são muito extremadas e muito ruins, ambas. Não se pode jogar um cara dentro da cadeia e imaginar que ele nunca vai sair. Se tirar a esperança do presidiário, você colocou ele na mão do cara que vai se aproveitar dele, como o PCC faz. Acho que um sexto de progressão não é ruim se não for um crime muito grave. A filosofia geral deveria ser criar discricionaridade na concessão de qualquer benefício.

Valor: A mudança na progressão não tenderia a sobrecarregar o sistema prisional?

Petrelluzzi: Não. Hoje o sistema prisional ainda funciona com base na versão antiga da lei dos crimes hediondos. Nos últimos 12, 13 anos, as prisões por narcotráfico crescem de forma assustadora. Há um número enorme de mulheres presas por narcotráfico porque foram levar droga para o marido ou o filho na cadeia. E aí o Judiciário é implacável. Outra mudança importante é o exame criminológico. Antes, para receber a progressão de pena, o preso era submetido a uma avaliação.

Valor: Foi o próprio governo de São Paulo que pediu o fim disso.

Petrelluzzi: Sim, foi o Nagashi (Furukawa, secretário de Administração Penitenciária entre 1999 e 2006). Falei para ele que era um equívoco. Mas o cara que cuida do sistema precisa gerar fluxo, porque o secretário de Segurança fica pressionando por mais vagas. Ele precisa construir mais ou soltar.

Valor: Qual a sua opinião sobre a federalização da segurança pública?

Petrelluzzi: Até certo ponto, sou favorável. Em um sistema único, as guardas municipais deveriam realizar o policiamento ostensivo. Polícia Civil e Polícia Militar deveriam ser unificadas. A polícia estadual a parte investigativa e a Polícia Federal, ampliada, coordenaria atividades integradas, de força-tarefa, algo que não existe no Brasil. Aqui o que há são reuniões para trocas de informações, que não querem dizer muito.

Valor: E qual o papel das Forças Armadas neste sistema?

Petrelluzzi: Policiamento das fronteiras, e olhe lá. Só conheço dois casos internacionais em que as Forças Armadas fazem o policiamento: Haiti e Paraguai. Não é o nosso modelo.

Valor: Não haveria uma reação corporativa muito grande a este modelo integrado?

Petrelluzzi: Existe resistência, mas o lobby da corporação policial não é tão forte assim no Congresso, para não ser vencido. O que pode pesar para que o Legislativo não faça esta reforma é a questão política. Uma polícia estadual unificada ficaria poderosa demais, poderia afrontar os governadores. Em São Paulo, teria um efetivo superior ao do Exército.