Vidas de contradições

À frente da Osesp, John Nelson faz dialogar criações de Mahler e Schumann

ter, 18/05/2010 - 9h23 | Do Portal do Governo

O Estado de S. Paulo

Morte e vida, A soprano Petra Lang e o maestro Nelson na récita de sexta-feira   Vida, morte, desapego, arte. Na noite de sexta-feira, na Sala São Paulo, tudo começou com Manfred, versão musical de Schumann para o poema de Lord Byron sobre o herói romântico que se refugia nos Alpes, à espera da morte. Música também é diálogo e há uma relação interessante entre a figura romântica de Lord Byron/Schumann e a desconstrução romântica de uma canção como Ich Bin der Welt, do ciclo Ruckert Lieder, apresentado em seguida no concerto da Osesp, no qual Mahler evoca o distanciamento do mundo. Os dois compositores estão falando do fim, da morte ? e, com isso, acabam na verdade evocando a vida.

“Descanso em uma dimensão tranquila!/ Vivo sozinho em meu céu,/ Em meu amor e em minha canção”, diz a canção de Mahler. Para abandonar o mundo, é preciso estar nele. Manfred anseia pela morte como única maneira de pôr fim ao desejo, ao amor proibido; Mahler canta o isolamento e, na verdade, está falando do indivíduo perante um mundo em transformação.

Nesse sentido, foi muito eficiente a construção das linhas melódicas, demonstrando cuidado com o texto e seus contrastes, da meio-soprano Petra Lang, solista da apresentação. O timbre é bonito, com graves cheios e ainda assim delicados, e uma região aguda brilhante. Expressiva, faz uso cuidadoso e envolvente da técnica ? seus pianíssimos desconstroem a música, a deixam em suspenso, ao mesmo tempo em que lhe dão novos significados.

Mas ela e orquestra estavam em mundos diferentes. Depois do Manfred um pouco embolado, o maestro John Nelson fez leitura apressada do Mahler ? e, em canções como Un Mitternacht, jogou a orquestra por cima da solista, matando o efeito em direção ao crescendo final da intensa linha de canto.

Na segunda parte, porém, a Sinfonia n.º 2 de Schumann devolveu à Osesp a sua melhor forma. É uma peça interessante no conjunto sinfônico do autor. Escrita ao longo da década de 1840, é fruto de um momento em que o compositor vivia profunda depressão ? e ainda assim, tem, no geral, um tom otimista, de coloridos claros. Paradoxo?

Uma entrada no diário de Clara Schumann, mulher do compositor, parece nos dizer que não. “Robert não consegue dormir à noite. Sua imaginação tem criado imagens assustadoras. De manhã cedo, encontro-o normalmente ensopado em lágrimas. Ele parece ter desistido de si próprio.” Outros textos vão ajudar a compor o quadro, fazendo referência às fobias e às constantes mudanças de humor que passariam a controlar sua existência.

Pesadelos. Não é demais, portanto, imaginar a composição musical como a busca por solução ? ou, ao menos, como forma de dar vida às imagens que lhe perturbavam a mente. Em uma carta a Mendelssohn, por exemplo, Schumann fala de pesadelos em que tímpanos e trompetes não o deixam em paz. “Eu não sei o que fazer com isso”, escreveu. Mais tarde, incluiria a passagem no segundo movimento da sinfonia.

A leitura de John Nelson é transparente, explorando a riqueza timbrística da orquestra em um todo equilibrado. Não carrega na dramaticidade, assim como não finge que ela não existe. Sua leitura sai de dentro e é muito bonito o efeito conseguido em momentos emblemáticos, como a passagem, no quarto movimento, em que a recapitulação melancólica de temas das seções iniciais dá logo lugar a um clima triunfante, que evoca Beethoven. O Schumann de John Nelson é contraditório e comovente. Como deve ser.