Viagens pelo romantismo com o piano de Lars Vogt

O Estado de S. Paulo

qui, 04/03/2010 - 8h48 | Do Portal do Governo

Pianista alemão toca obra de Schumann na abertura da temporada da Osesp

O alemão Lars Vogt volta-se ao piano e toca uma passagem do último movimento do concerto de Schumann. “Há momentos como esse, em que Schumann ecoa uma valsa de Chopin”, diz ele. Em 2010, comemora-se o bicentenário dos dois compositores, símbolos do período romântico. E Vogt, um dos grandes representantes da nova geração de pianistas, interpreta a obra de Schumann a partir de hoje na Sala São Paulo, em concertos que abrem oficialmente a temporada da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo.

“Cada compositor criou um mundo próprio, mas há pontos de contato entre eles”, diz ele ao Estado na manhã de quarta-feira, pouco antes do primeiro ensaio com a orquestra, que sob a regência de Yan Pascal Tortelier vai interpretar também peças de André Mehmari, Debussy, Mendelssohn e Florent Schmitt. “Para mim é fascinante perceber como a música retrata uma época – neste caso, o século 19 – e, ao mesmo tempo, pode ser completamente atemporal, porque fala do que é eterno, a alma do ser humano”, diz.

A música de Schumann tem importância grande em sua carreira. Como isso aconteceu?
Ele é um nome-chave do romantismo e, quanto mais envelheço, mais me sinto próximo de sua obra. De certa forma, acho que Schumann acabou se transformando no centro de minha versão de história da música. É uma obra pessoal, tocante. Há momentos de intensa alegria e amor e, ao mesmo tempo, esse foi um cara que conheceu a dor humana, que também transborda na sua criação. Há uma certa fragilidade em sua música. Às vezes me sinto, enquanto toco, com vontade de protegê-lo do mundo (risos). A maneira como ele coloca sua alma na música que escreve é tocante.

Nesse sentido, como vê a importância de seu concerto para piano?
Já se vão mais de 20 anos desde que eu o toquei pela primeira vez e ainda hoje tenho a sensação de que com este concerto não há meio-termo. É preciso se entregar a ele, sempre, correndo todos os riscos que isso acarreta. Você tem que se deixar levar pela emoção intensa da peça. O lirismo do primeiro movimento; o segundo, que soa para mim como um conto de fadas; o misto de virtuosismo, com o tratamento revolucionário do tempo no terceiro movimento, antes da recapitulação do tema inicial: para transmitir tudo isso, é preciso entrega do intérprete.

Ainda que representantes de uma mesma época, é possível encontrar características próprias aos mundos sonoros e emocionais criados por Chopin e Schumann?
Em Chopin sinto uma dor muito forte em cada nota. Claro que há momentos alegres, que convivem com a dor, mas essa alegria soa dolorida para mim. O que me parece extremamente fascinante em Chopin, no entanto, é o fato de que tudo o que ele escreveu estabelece uma relação imediata com o ouvinte, parece que segue direto ao coração das pessoas. É mágico.

Estamos falando de autores que nasceram há 200 anos e que foram símbolos do movimento romântico e da inspiração do século 19. Ainda assim, a música deles parece extremamente atual para a nossa época.
Acredito que sim e isso porque, na verdade, não acho que o ser humano mude muito em sua essência ao longo dos séculos. As paixões humanas são as mesmas. E, de certa forma, em um mundo como o nosso, que prega a rapidez, a técnica, a performance acima de tudo, o desejo por algo maior, pelo arrebatamento, acaba se tornando extremamente atual e necessário. É fascinante perceber como a música retrata uma época e, ao mesmo tempo, pode ser completamente atemporal, porque fala do que é eterno, que é a alma do ser humano.

Em que sentido a arte, em sua opinião, pode levar a uma percepção diferente da realidade? Você trabalha com formação musical na Alemanha. Em seu trabalho com as crianças , como acha que esse elemento dev ser introduzido?
O projeto surgiu de um desespero meu e de alguns colegas a partir do tipo de formação musical que existe hoje. O fato é que hoje os jovens não têm chance de se conectar com a música, com a arte em geral, com esse mundo de emoções que a criação oferece. Tudo é técnica, é desempenho. E, por mais que isso seja importante, até mesmo na música, não se prepara um jovem ou adolescente para uma vida plena, em que ele possa estar em contato com ele mesmo e com o mundo de maneira diferente. A arte nos ensina a nos expressar e isso se dá porque, antes de mais nada, nos ensina a olhar para nós mesmos. O ser humano é contraditório, tem dúvidas, e qualquer pessoa sente em algum ponto um estranhamento com relação a si mesmo. A música pode ajudar a colocar essa pessoa em contato com si própria. Ao falar de coisas que não se definem, mas se sente de maneira muito forte, a música sugere o contato com o que é humano, com a paixão.

Serviço
Osesp. Sala São Paulo (1.484 lug.). Praça Júlio Prestes, 16, tel. 3223-3966. De hoje e amanhã, 21 h; sáb., 16h30; dom., 11 h (grátis). R$ 36 a R$ 122