Viagem lírica e sinfônica

Valor

sex, 30/10/2009 - 8h17 | Do Portal do Governo

Osesp trará jovem geração de maestros internacionais e divas do canto para interpretar Mahler no ano de seu centenário 

“Sei muito bem que como compositor não terei reconhecimento em vida. Espero este reconhecimento para mais tarde, quando já estiver morto. É a distância necessária para uma adequada avaliação de um fenômeno como o meu.” Essas palavras foram pronunciadas, um século atrás, por Gustav Mahler (1860-1911). Soam proféticas hoje. Naquele momento, ele desdenhava até sua imensa fama como maestro; lamentava a incompreensão de seus contemporâneos em relação a suas obras. 

Mahler esperou cerca de 50 anos. Na década de 60 o maestro americano Leonard Bernstein gravou pela primeira vez suas sinfonias e ciclos de “lieder” (canções) sinfônicos. Ele, também na dupla condição de maestro e compositor, fazia a mesma queixa de que só aplaudiam seu trabalho no pódio. Julgava-se uma verdadeira reencarnação de Mahler. E suas gravações – em CDs e também em DVDs – constituem, quem sabe, o maior de seus legados e padrão de referência nas interpretações. 

Nove parece ser mesmo um número cabalístico na música clássica. Nove foram as sinfonias escritas por Ludwig van Beethoven entre 1799 e 1824. Com elas, ditou os rumos da música durante todo o século XIX. “A sinfonia é como um mundo”, disse Mahler certa vez. Pois ele abriu diversos mundos para toda a música do século XX. Não é coincidência que os músicos da vanguarda histórica vienense das primeiras décadas do século XX o tenham entronizado como uma espécie de padrinho preferencial. 

Um grupo seleto de cantores e músicos brasileiros, comandados pelo maestro Carlos Moreno, comprova isso num recentíssimo e excelente CD nacional do selo Algol, no qual interpretam o ciclo de seis canções “O Canto da Terra”, que Mahler compôs sobre poemas chineses em 1908. A versão para tenor (Fernando Portari), barítono (Rodrigo Esteves) e orquestra de câmara formada por 14 músicos foi elaborada por Arnold Schoenberg, o mais revolucionário compositor do início do século passado. O CD traz, ainda, no encarte, os seis poemas em português. 

Contam-se às centenas as gravações disponíveis no mercado internacional da produção mahleriana. E mesmo a vida musical – que gira basicamente em todo o mundo em torno das grandes instituições sinfônicas – tem nas suas sinfonias e ciclos de canções o eixo central de programação. Pouco antes de morrer, em 1956, o maestro Arturo Toscanini apontava Beethoven como maior criador musical de todos os tempos. Era por suas sinfonias que todo candidato a regente se media. Hoje, é interpretando Mahler que maestros e orquestras se testam e tentam conquistar prestígio. 

A explicação é necessária para se entender o significado da tão esperada presença de Mahler na vida musical brasileira. É claro que suas sinfonias já foram executadas por aqui no passado. E até se compreende que duas efemérides tenham força mercadológica suficiente para promover qualquer compositor. No caso de Mahler, comemoram-se em 2010 os 150 anos de seu nascimento; e presta-se tributo, em 2011, ao centenário de sua morte. 

Mas, para nós, brasileiros, o mais expressivo é que pela primeira vez a Osesp, única orquestra brasileira de primeira grandeza, de nível de fato internacional, mergulha numa viagem que promete ser impecável pelo mundo musical desse compositor. Ou seja, em condições praticamente ideais. Isso quer dizer o seguinte: ela traz para reger este verdadeiro Himalaia sinfônico a jovem geração de maestros, que começa a firmar-se nos mais disputados pódios sinfônicos do planeta. Músicos na faixa dos 35 a 50 anos, portanto em pleno processo de ascensão. Seriam candidatos potenciais para assumir a direção artística da Osesp a partir de 2012? A pergunta faz todo sentido. Entre as cantoras convidadas, divas como Nathalie Stutzmann e Petra Lang alternam-se com a brasileira Gabriela Pacce, num saudável intercâmbio. 

Durante a próxima temporada, a Osesp interpreta cinco sinfonias e o ciclo de canções “Rückertlieder”. Entre os regentes, várias estrelas ascendentes na cena internacional, como o dinamarquês Thomas Dausgaard (“Sinfonia nº 6”) e o americano Justin Brown (“Sinfonia nº 4”). Dois portorriquenhos, respectivamente radicados nos Estados Unidos e na França, têm presença importante: Giancarlo Guerrero (“Sinfonia nº 3”) e John Nelson (“Rückertlieder”, com a excelente mezzo soprano Petra Lang). Temos até o nosso representante nesse grupo, Roberto Minczuk (“Sinfonia nº 1”). Mas, sem dúvida, a cereja nesse magnífico bolo, a atração especial, é Marin Alsop, ex-aluna de Leonard Bernstein que ganhou todos os prêmios internacionais deste ano (ela rege a “Sinfonia nº 7”). 

É impressionante a atualidade das principais questões que envolveram a vida e a criação musical de Mahler. Em 1897, por exemplo, como maestro, faltava-lhe só assumir o topo do mundo lírico: a direção da Ópera de Viena. Para assumi-lo numa cidade antissemita, foi obrigado a abjurar sua fé judaica e converter-se ao catolicismo, numa atitude vista como oportunista. 

Dez anos depois, desgastado no cargo e também pessoal e afetivamente, deu uma guinada de 360 graus, aceitando o convite para reger a Filarmônica de Nova York. Foram “três golpes do destino”, como sua mulher Alma, 21 anos mais jovem do que ele, descreveu três trágicos acontecimentos de 1907, “que o transformaram em outro homem”: por causa de ataques antissemitas, renunciou à Ópera de Viena; sua primeira filha, Maria Anna, morreu aos 5 anos de difteria; e os médicos diagnosticaram uma doença cardíaca incurável. 

A esses três devemos acrescentar mais um: o escandaloso caso que Alma teve em 1910 com o jovem arquiteto Walter Gropius. E num momento crucial de sua vida, quando constatou a impotência sexual. Aconselhado por um amigo, Mahler consultou-se durante uma tarde inteira de agosto de 1910 com Sigmund Freud. 

É daquelas sessões de análise que aguça a curiosidade de qualquer um. O dramaturgo Ronald Harwood é conhecido como o autor de “Taking Sides”, peça teatral que discute a ambígua relação do maestro Furtwängler com o nazismo levada ao cinema com Harvey Keitel. Pois sua peça “A Conversão de Mahler”, de 2001, enfoca justamente esses dois problemas do compositor: a conversão ao catolicismo e a sessão com Freud. Ela terá uma leitura dramática especial dirigida por Oswaldo Mendes em 1º de dezembro, no Teatro Cultura Artística Itaim, com entrada franca. 

“Analisei Mahler durante uma tarde, em Leyde”, anotou o pai da psicanálise em seu caderno. “Se posso dar fé no que me veio à mente, fiz um bom trabalho. A consulta pareceu-lhe necessária porque sua mulher revoltava-se contra o fato de que a libido dele afastava-se dela.” A sensação de que o problema havia sido resolvido durou duas curtas semanas. Alma voltou a traí-lo com Gropius – o que só serviu para aumentar sua desesperança e angústia. 

Mahler estava em seu leito de morte, em maio de 1911, quando o carteiro bateu à porta (ao menos na versão imaginativa de Harwood). Trazia uma cobrança. Era Freud, ainda querendo receber os honorários pela sessão de análise de nove meses antes. Antes tarde do que nunca.