USP forma 81 índios professores

O Estado de S.Paulo - Segunda-feira, 13 de outubro de 2008

seg, 13/10/2008 - 8h31 | Do Portal do Governo

O Estado de S.Paulo

Na juventude, o guarani Marcílio de Castro, de 55 anos, que também atende pelo nome indígena Tupã, fugiu da aldeia onde morava no interior do Paraná para continuar a estudar “com os brancos”, como costumava dizer seu avô. Mais de 30 anos depois, em nome da preservação de sua cultura, Tupã recebe hoje, com mais 80 índios representantes de 30 aldeias existentes no Estado, o diploma de curso superior na formatura da primeira turma de professores indígenas de São Paulo.

Em projeto desenvolvido em parceria da Secretaria Estadual de Educação com a Universidade de São Paulo (USP), todos foram preparados para lecionar até o final do ensino básico – fundamental e médio – nas 30 escolas estaduais localizadas nas aldeias paulistas. As unidades têm cerca de 1.500 estudantes, crianças e jovens originários de cinco etnias: guarani, tupi, terena, kaingan e kerenak.

“Meu avô não queria minha matrícula porque falava que nós, índios, não tínhamos de aprender como brancos nem viver como brancos. Dizia que de só ficar estudando, sentado, o índio ia ficar preguiçoso, vagabundo. Dizia que tinha que viver trabalhando, roçar, fazer armadilhas, ir no mato caçar”, conta o índio Marcílio. “Fugi do meu avô para ir para a escola. Na hora que voltei, cheguei com medo, mas ele não fez nada e falou que eu podia estudar.”

Marcílio vive na Aldeia Aguapeú, em Mongaguá, a 86 km da capital, litoral sul de São Paulo. A comunidade guarani tem cerca de 25 famílias, com 110 pessoas, dividas em dois povoados, que vivem às margens do Rio Bixoró, local que fica isolado em época de chuvas.

Todas as crianças guaranis são atendidas por uma mesma escola, que tem duas salas de aula, com sete alunos cada. Além de Marcílio, outros dois professores foram formados no curso da USP, iniciado em 2004. “As crianças já nascem falando a nossa língua e na escola aprendem as duas línguas, o guarani e o português”, diz a índia Jera Poty, ou Laurinha da Silva, de 30 anos, filha de Marcílio, professora e diretora da escola, além de mulher do cacique local. “O curso na USP foi bom porque consegui aprender mais da história para fortalecer nossos costumes, cultura, tradição. As crianças já não estavam mais freqüentando as casas de reza”, explica Jera Poty.

No caso dos guaranis, ao contrário de outras tribos que vivem em São Paulo, o idioma indígena foi preservado e, dentro da escola, as crianças usam mais a língua materna. “É importante que as pessoas que se formam levem o aprendizado para as nossas crianças e para a preservação das aldeias. Alguns índios aprendem, usam isso só em benefício deles e não ensinam as crianças”, afirma o cacique Karaí Ratandy, ou Davi da Silva, de 36 anos.

Ara é uma dessas crianças. Tem 9 anos e usa o espaço da escola para estudar e brincar. Fala português timidamente, mas entende tudo. Na lousa, em meio a palavras em guarani, escreve, para brincar com a amiga: “Dalva beija o Denilson.” Na saída, agradece ao professor com a palavra mais ouvida na visita à aldeia: “haèvete” (obrigado).

CURRÍCULO PRÓPRIO

Desenvolvido por um núcleo de magistério indígena, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp), o curso de formação de professores indígenas tem currículo próprio, baseado na estrutura de uma graduação em Pedagogia e moldado conforme necessidades e interesses dos alunos.

Para identificar as demandas específicas dos índios, cada uma das três turmas de professores indígenas do curso foi acompanhada por uma professora orientadora, que assistia às aulas na USP e conhecia a realidade das aldeias. Cada aluno do curso saía da aldeia uma vez por mês para viajar a São Paulo e assistir a uma semana de aulas na universidade.

“Fomos interlocutoras deles durante o curso, responsáveis por acompanhar todo o percurso”, diz Patrícia Zuppi, uma das professores orientadoras. “Fomos direcionando o currículo a interesses deles para dar autonomia à cada comunidade.”

Um dos objetivos é que as comunidades indígenas trabalhem desde a alfabetização,de modo bilíngüe, com o português e a língua materna. “A idéia é que eles também conheçam e possam usar todos os nossos códigos para uma relação mais justa com a sociedade dominante. É importante que eles dominem o português e a legislação que existe em relação a eles”, afirma Patrícia Zuppi.