Uma rede para nossa tribo

O Estado de S.Paulo - Quinta-feira, 23 março de 2006

qui, 23/03/2006 - 12h41 | Do Portal do Governo

Maria Helena Guimarães de Castro

Aconteceu em São Paulo há poucos anos. O homem branco tentava explicar ao grupo indígena por que na cidade tão rica havia crianças morando nas ruas. A lógica dos visitantes exigia parar o carro e levá-las para casa. O anfitrião tentou justificar a impossibilidade. Inconformados, os índios insistiam: “Mas não é o seu povo?” O homem branco, que sempre lutou pelos direitos das crianças, morreu de vergonha.

As populações indígenas desconhecem a existência de meninos de rua porque repartem comida e cuidados com os indiozinhos, inclusive os órfãos. É seu povo. Toda a aldeia se sente responsável pela futura geração.

São Paulo, 26 de março de 2003. Nesse dia, inúmeras tribos decidiram assumir a responsabilidade pela futura geração, numa parceria inédita: a Rede Social São Paulo.

Pela primeira vez, governo, empresários e organizações não-governamentais (ONGs), articulados pela Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social, assumiram o compromisso de trabalhar juntos para proteger a infância e a juventude de São Paulo. O grupo nasceu fortalecido por 31 institutos, associações e fundações empresariais de reconhecida responsabilidade social. Atingimos hoje 50 integrantes, entre oito secretarias de Estado, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e o Conselho Estadual de Direitos da Criança e do Adolescente.

São Paulo dispõe de uma oportunidade imperdível para mobilizar em escala estadual o Judiciário, o Executivo, prefeituras, ONGs, empresas de atuação social, clubes de serviço e as próprias lideranças jovens. Temos a chance de otimizar recursos humanos e financeiros e apontar caminhos a outros Estados, integrando tecnologias sociais para promover mudanças efetivas. Independentemente dos partidos que venham a se alternar no poder. Aliás, é a pluralidade dessa rede que nos permite sonhar com políticas públicas enraizadas e sob o controle da sociedade.

Não poderia ser de outra forma no século 21. O trabalho integrado entre o primeiro, o segundo e o terceiro setores é o caminho para políticas públicas mais eficientes. Ainda que nem sempre o mais fácil. Vencida a maratona de reuniões, inúmeras atas e horas e horas de trabalho, a Rede Social decidiu superar os entraves ao funcionamento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Aprovado há 16 anos, o ECA é desconhecido por muitos dos responsáveis pelo cumprimento da lei. Enquanto em alguns municípios a carência é de serviços, em outros faltam pessoas ou elas trabalham de forma desarticulada. Conselhos tutelares e de direitos nem sempre têm condições de cumprir o seu papel. Há desperdício de tempo e de recursos.

A Rede Social elegeu, então, o Projeto Envolver para identificar, mobilizar e capacitar as pessoas envolvidas no Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente em cada município. São eles os secretários municipais de Educação, Assistência e Saúde, os juízes, promotores de Justiça, delegados, defensores públicos, educadores, assistentes sociais, agentes de Saúde, conselheiros tutelares e de direitos, advogados, líderes comunitários e lideranças empresariais envolvidos na defesa dos direitos das crianças.

Mais de 2.500 desses atores locais foram identificados e capacitados em 48 municípios, num projeto piloto, em 2005. Um Termo de Convênio entre o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente e a Associação Comercial de São Paulo, representante da Rede Social São Paulo, tornou viável o financiamento do Projeto Envolver, com recursos captados pelo empresariado. E a Oficina de Idéias foi a consultoria escolhida para aplicar o Envolver, após um rigoroso processo de seleção.

Sorocaba, Mogi das Cruzes e Santos foram pólos onde ocorreu a capacitação, que adota uma metodologia inédita do Unicef. Ela coloca na mesma roda os que trabalhavam pelo direito da criança, sem se conhecerem: o juiz, a professora, o policial, a assistente social, o líder comunitário, o presidente do Rotary ou do Lyons. Eles passam a falar a mesma língua. Olho no olho, descobrem afinidades, superam preconceitos e descobrem formas de tornar o ECA uma lei para valer. Ao final da capacitação, identificam os problemas mais graves de cada região e, ao mesmo tempo, elaboram planos de ação que podem executar.

Foi o que começou a acontecer em Cesário Lange, Alumínio, São Roque, Ferraz de Vasconcelos e Guararema, entre outros municípios incluídos no projeto piloto. Em Mogi das Cruzes, as faculdades se comprometeram a incluir no currículo de todos os cursos de graduação uma disciplina sobre o Estatuto. Itanhaém implantou os Centros de Referência de Assistência Social.

A Rede Social está agora mobilizada para estender, nos próximos meses, o Projeto Envolver aos 231 maiores municípios do Estado. Depois, a parceria entre profissionais e instituições deve continuar nas Rodas de Proteção, em que governo e sociedade civil se propõem a superar divergências e vaidades em defesa das crianças e dos adolescentes.

O futuro do País depende de como cuidamos da infância. Das crianças que crescem protegidas, amadas, desde a gestação, com acesso a boas escolas, médicos, esportes, cultura e lazer. E mais ainda das que são maltratadas, vítimas do abandono, da violência doméstica, da falta de alimento e de afeto. Todas pertencem à nossa tribo. São nosso povo. Quem mais poderia cuidar delas?

Maria Helena Guimarães de Castro, professora de Ciência Política, é secretária estadual de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo