Uma orquestra brasileira de São Paulo

Folha de S. Paulo

qui, 04/03/2010 - 8h44 | Do Portal do Governo

Uma orquestra, sobretudo se financiada, em grande medida, por verba pública, pede para ser pensada como um complexo cultural

Por que alguém vai a um concerto? Para se divertir, para relaxar, para se encantar, para se esquecer das questões do mundo. Todas essas são respostas possíveis e legítimas, mas não dão a dimensão do que também pode ser a música: uma forma única de expressão, de natureza ao mesmo tempo afetiva e crítica, capaz de pôr em jogo as mais agudas questões do mundo, de modo intensamente humano.

Essa, pelo menos, tem sido uma das premissas que servem de base para pensar as múltiplas atividades de uma orquestra como a Osesp.

Nenhum conjunto desse porte pode se contentar hoje apenas com a excelência musical dos seus quadros e com a originalidade da programação, por maiores que sejam. Uma orquestra -especialmente se financiada, em grande medida, por verba pública- pede para ser pensada como um complexo cultural, estendendo seu campo de atuação por áreas diversas, que vão da atividade musical, propriamente dita, a ações educativas, publicações, atividades de formação de plateia, gravações. Uma orquestra não está isolada do mundo: está bem no meio da realidade e tem de mobilizar seus meios de responder a ela.

Tudo isso seria verdade para qualquer orquestra, nos mais variados lugares. Mas parece ainda mais verdade para uma orquestra brasileira, que tem sua sede em pleno conturbado centro da maior capital do país. A Osesp é uma orquestra brasileira de São Paulo. Não pode jamais perder essa identidade e deve pesar cada palavra dessas, a cada nova iniciativa.

Não foram poucas, aliás, nesses últimos dois meses e meio, desde que o presidente Fernando Henrique Cardoso, em nome da Fundação Osesp, anunciou o novo modelo de gestão da orquestra, composto por um regente titular (Yan Pascal Tortelier), um diretor-executivo (Marcelo Lopes) e um diretor artístico (eu mesmo). Às vésperas do início da temporada 2010, já há várias novidades que merecem ser mencionadas, no espírito do que foi dito acima.

A começar pelas encomendas: Edu Lobo vai compor um grande frevo para orquestra, que será o bis na turnê europeia, em novembro (por dez cidades, incluindo Viena, Varsóvia, Frankfurt e Madri, com todos os ingressos esgotados). E André Mehmari compôs uma “Fantasia sobre o Hino Nacional Brasileiro”, que abrirá a temporada, inaugurando também uma série anual de “fantasias” (a cada ano, a cargo de outro compositor).

Para 2011, entre outras coisas, o Quarteto Osesp fará a estreia de “Quatro Canções” do jovem compositor mineiro Kristoff Silva, e a orquestra deve interpretar obras de autores como Willy Correa de Oliveira e Armando Albuquerque, lado a lado com outros nomes da atualidade, como Arvo Pärt e Thomas Adès, e com todo um rol de autores do passado, de Mozart e Beethoven a Messiaen e Shostakovich.

Ao longo de 2010, a Sala São Paulo abrigará um ciclo de palestras e debates sobre música. Os textos das palestras estarão nos programas impressos e também no site. A ideia é estimular uma reflexão sobre temas musicais no sentido mais amplo, em diálogo com o cenário cultural brasileiro.

O diálogo também se dará de forma mais direta, pela participação de quadros da Osesp em alguns dos eventos mais importantes do calendário. Merecem destaque os concertos da orquestra ao ar livre na Virada Cultural municipal e na estadual. O coro vai à Bienal de Artes, o Quarteto da Academia vai participar do show de abertura da Flip, em Paraty.

Os concertos matinais gratuitos não só terão continuidade como tendem a ganhar mais expressão. E os projetos educativos da Fundação Osesp na Sala São Paulo, envolvendo a orquestra e vários parceiros, atenderão neste ano 75 mil crianças, jovens e professores.

Sinalizando o empenho de pensar a orquestra como campo de convergência de variadas correntes da nossa produção, as capas de disco passam a exibir a arte de fotógrafos brasileiros, e ensaístas e ficcionistas escreverão nos encartes. Para começar: uma foto de Arthur Omar e um texto de Milton Hatoum, enriquecendo a “Floresta Amazônica” de Villa-Lobos.

Esses exemplos bastam para dar uma ideia do que se vem fazendo. A Osesp é uma orquestra brasileira de São Paulo. Ser uma orquestra, hoje, significa algo muito diferente do que já significou, e ser uma orquestra brasileira só agrega complexidades. Ser uma orquestra brasileira de São Paulo, então, exige ainda outras ambições e responsabilidades. Não é menos que isso que nos cabe, nem é menos que isso que se quer.

Arthur Nestrovski , músico e ensaísta, é o diretor artístico da Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo)