Um policial quase nota 100

Revista Época

qua, 03/11/2010 - 9h01 | Do Portal do Governo

Foi em busca de ação que o ainda garoto Ironcide Gomes Filho seguiu os passos do pai, um soldado do Corpo de Bombeiros, e entrou para a carreira militar. Passou para a Aeronáutica, mas a miopia o impediu de ser piloto de caça. “Melhor ir para a Polícia Militar”, pensou, mirando o estereótipo do policial que passa o dia nas ruas numa viatura, correndo atrás de bandidos.

Na PM, porém, descobriu ser talhado para atuar num terreno em que o forte não é a adrenalina: o dos estudos. Já com um diploma de bacharel em Direito, foi transferido para a Academia do Barro Branco, que forma os oficiais da PM de São Paulo. Chegou lá para lecionar Direito Penal. Seis anos depois, entraria na seção de Doutrina, passando a ser o responsável pelos manuais, normas e cursos da PM.

A carreira acadêmica de Ironcide chegou ao ponto alto no início de outubro, quando ele recebeu o título de mestre em ciências policiais do primeiro curso do gênero no país, do Centro de Altos Estudos de Segurança da PM. Com média de 99,17, foi o primeiro colocado da turma, que tinha 130 alunos. Sua tese é sobre a responsabilidade social dos PMs.

A história do capitão Ironcide mostra uma mudança de perfil dos oficiais da PM de São Paulo. Sem ter no currículo os atos de heroísmo que imaginava realizar na adolescência, o policial que agora é mestre foi condecorado com a medalha Pedro de Campos, que premia quem se destaca por sua contribuição intelectual no combate ao crime. “Estimulamos ao máximo o estudo do policial”, diz o comandante da PM paulista, coronel Álvaro Batista Camilo. “E a atuação da Polícia hoje é calcada em estudos acadêmicos.”

O bom policial hoje tem de reunir conhecimentos de Direito, ciências sociais, direitos humanos e administração e gestão de Polícia. Saber disparar uma arma ainda é fundamental, mas, para chegar ao posto de coronel, um oficial mais estuda que atira. É preciso ter os títulos de mestre e doutor em ciências policiais. Para isso, tem de dedicar anos à academia e aos cursos de educação continuada.

Para combater o crime, os policiais recorrem não só ao instinto, mas ao treinamento e às boas ideias. Atualmente, o Centro de Estudos da PM paulista conta com um banco com cerca de 4 mil teses acadêmicas. Uma parte delas tem ajudado a planejar as ações dos homens que vão para as ruas. A tese de doutorado do coronel Camilo foi defendida em 2006. Intitulada “Sistemas de apoio à decisão na atividade policial”, a contribuição teórica do comandante da corporação ajudou a dar forma ao Plano de Policiamento Inteligente. A partir do cruzamento de bancos de dados, além de denúncias e informações prestadas pelos Conselhos de Segurança, é feito um mapeamento das ocorrências criminais. As áreas mais críticas recebem mais policiamento. E o patrulhamento é feito de acordo com uma Carta de Prioridade de Policiamento, que determina a rota, a hora e os locais em que a viatura vai parar. Outra ideia que tem servido para melhorar o policiamento foi orientar as ações segundo um Procedimento Operacional Padrão. Hoje, quase 200 normas determinam as abordagens policiais, desde a forma de colocar as algemas em suspeitos até quando e como a força deve ser usada.

É claro que nem todo o estudo e planejamento torna a PM imune a falhas. Sem contar as ocorrências em que os policiais foram incapazes de impedir a ação de bandidos, trocas de tiro com suspeitos ainda acontecem em lugares que colocam inocentes em risco. Mas é longe das ruas que policiais como Ironcide podem mostrar seu talento. “Trabalho de rua, para mim, só excepcionalmente”, diz o capitão. Uma das raras vezes em que correu atrás de bandido foi quase por acaso. Era 1992 e ele seguia numa viatura para uma reunião de oficiais quando viu um rapaz quebrar o vidro de um carro e pegar o toca-fitas. Ironcide desceu do carro e iniciou a perseguição. O ladrão foi mais rápido. Fugiu.

Aos 42 anos e há quase 25 na corporação, Ironcide hesita em admitir, mas sempre foi bom aluno, daqueles disciplinados, que só tiram notas altas. Na Academia do Barro Branco, ele se formou entre os dez primeiros. Só não ficou mais bem colocado por acidente: caiu do cavalo, quebrou o braço e não pôde frequentar as atividades de cavalaria.

Anos depois, ficou em primeiro lugar num curso de Polícia Judiciária. Algum ressentimento por estar longe da linha de frente? “Gosto da Polícia como um todo, independentemente da área. E sempre gostei de estudar”, afirma. Sua voz não demonstra nenhum traço de mágoa. “Antes, eu tinha a idéia de que o PM deveria estar só nas ruas. Isso é passado. O trabalho tem de ser feito com inteligência.” A escolha do tema de sua tese, sobre responsabilidade social na PM, evidencia a importância que ele dá à formação do policial cidadão. A sociedade só tem a ganhar com PMs que, como ele, mereçam notas tão perto de 100.