Um ideal de orquestra

O Globo - Terça-feira, 16 de setembro de 2004

ter, 16/11/2004 - 17h08 | Do Portal do Governo

Luiz Paulo Horta

Encerrando uma excursão por quase todas as capitais brasileiras, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo apresentou-se sábado e domingo no Teatro Municipal em concertos que transcendiam o simplesmente musical. O de domingo teve a presença do governador Geraldo Alckmin, que chegou a ensaiar uma caminhada pela Cinelândia, com acenos aos eventuais passantes. São Paulo mostrava a sua força, e nenhum político deixa escapar uma oportunidade como esta.

Mas também erraria quem ficasse preso a esse aspecto político — a menos que se fale em política com P maiúsculo. A Osesp representa, para São Paulo, a maturação de um projeto que já tem sete anos, e que hoje é um justo orgulho do estado — e da cidade.

Orgulho, também, para o Brasil — e isso o maestro Neschling fez questão de dizer nos discursinhos que disparou tanto sábado quanto domingo. O maestro gosta de falar. Nem sempre ele é muito hábil no que diz — porque gosta do que está fazendo assim como uma criança curte o seu melhor brinquedo. Mas ele diz coisas certas — como o fato de que, na longa excursão pelo Norte/Nordeste/Sudeste, a orquestra foi acolhida com um entusiasmo que se dedica a um fenômeno nacional, e não mais simplesmente “paulista”. A Osesp representa, hoje, um ideal de orquestra; “E se São Paulo pode ter — enfatizava o maestro — por que não Belo Horizonte, Porto Alegre, Rio de Janeiro?”

É a grande pergunta; e a resposta não é simples. Poder, pode; mas é preciso querer. No caso da Osesp, começou com um secretário de Cultura (Marcos Mendonça) que convenceu o governador Covas a investir num conjunto sinfônico que não ia lá muito bem das pernas. O governador topou o desafio; John Neschling, que então vivia na Europa, foi considerado o homem capaz de tocar o projeto para diante. “Eu não queria — contou-me o próprio Neschling numa entrevista já antiga — fiz todas as exigências; mas eles aceitaram todas”. E assim surgiu um conjunto que, hoje, está tocando no nível das melhores orquestras européias, ou americanas; e que, a partir da Sala São Paulo, irradia uma atividade que não se limita aos concertos tradicionais — é todo um projeto de educação pública.

E é isso o que o público deste fim de semana (sobretudo o de domingo) parecia sentir: havia uma expectativa, como a de quem está vendo algo de realmente importante. A pianista e compositora Jocy de Oliveira dizia (no domingo): “Ele (Neschling) resgatou o nosso orgulho de músicos”.

É muito por aí. Músico clássico, no Brasil, é levado a sentir-se meio esdrúxulo — como se não fizesse, realmente, parte da cultura nacional. Pois ainda agora não desistiu o Ministério da Cultura de incluir, na programação do Ano do Brasil na França, qualquer representação da música de concerto no Brasil? Informalmente, foi dito aos que lutavam por isso que esta não era a “música do povo”.

Grave erro. Significa dizer que o povo não pode passar de um certo nível de sofisticação artística; não pode querer dominar uma arte mais complexa, mais elaborada, como é a música de concerto. E essa é a verdadeira discriminação. Significa dizer ao menino de morro que foi Machado de Assis que ele nunca deveria aprender francês e inglês; que jamais chegaria a ler Dickens e Balzac, porque esta não era “arte do povo”. E assim fica o governo (os governos) adubando uma arte popular que jamais dependeu do(s) governo(s) para existir, crescer e se afirmar; e os músicos “clássicos” ficam chupando os seus ossinhos, esperando uma migalha que caia do céu.

Foi tudo isso que o “projeto Osesp” desmentiu. Foi isso o que sentiram as platéias dessa excursão agora encerrada — um sucesso em todos os sentidos.

O Rio pôde assistir a dois programas. O de sábado era mais “fácil”: começava com a abertura do “Guarany”, de Carlos Gomes (quanta música compactada em tão pouco tempo!), prosseguia com o “Pássaro de Fogo”, de Stravinsky, e com a Sinfonia n 5 de Tchaikovsky. O Tchaikovsky estava bem, nesse nível muito alto que é hoje o da Osesp. Mas o “Pássaro de Fogo” foi uma dessas performances que poderiam passar diretamente para o disco. É uma obra fascinante, uma partitura quase mágica. Começa ainda banhada em sonoridades impressionistas. Mostra, em seguida, a influência de Rimsky-Korsakov, professor de Stravinksy; e, de repente, uma pancada seca marca o início da “Dança infernal de Katschei”. E é todo o século XX que se apresenta; a ruptura está feita. Mas ela não será completa até a “Sagração da primavera”. No “Pássaro”, Stravinsky volta a uma ternura infinita com a “Berceuse das princesas”, e muito devagarzinho, vamos chegando à grande cena da iluminação final.

Uma partitura assim precisa de todos os tons, de todas as nuances. A Osesp realizou pianíssimos que chegavam quase ao “som zero” (como o “o grau zero da escrita” de que falava Roland Barthes). Isso é muito mais difícil do que tocar forte. Todos os naipes funcionavam bem. E no domingo, solene encerramento da temporada, a Nona de Mahler mostrava, além de um enorme poder de convicção que emanava do maestro, um som de cordas que não fica muito a dever ao de uma Filarmônica de Berlim. Nos dois dias, os “extras” foram todo um show à parte, passando pelo finíssimo Camargo Guarnieri da “Suíte Villa-Rica”, pelo exuberante “Mourão”, de Guerra-Peixe, que levanta qualquer platéia, e por uma versão muito divertida da “Marcha Radetzki”, de Johann Strauss Jr., em que os músicos se envolvem numa animada coreografia. O maestro, ao fim, estava exausto e feliz. Com todo o direito. Seria bom que a Osesp marcasse presença, todos os anos, nas temporadas cariocas. Assim teríamos diante dos olhos o que é possível fazer quando se tem vontade; e que não é só uma questão de dinheiro.