Um ato de coragem

Folha de S. Paulo - Tendências/Debates - Quinta-feira, 4 de dezembro de 2003

qui, 04/12/2003 - 9h35 | Do Portal do Governo

Eduardo Pereira de Carvalho

O mercado de combustíveis líquidos no Brasil é permanentemente citado como uma das vergonhas nacionais. Adulteração do produto, lavagem de dinheiro e sonegação fiscal aparecem sempre nas notícias de jornal e TV a respeito do assunto.

Existe muita marola e pouca ação para resolver o problema. Existia: o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, num ato corajoso e sem precedentes no Brasil, está sancionando neste início de dezembro lei de sua autoria que reduz de 25% para 12% o ICMS incidente sobre o álcool hidratado no Estado. Trata-se de um golpe de morte na sonegação, que deverá aumentar a arrecadação do Estado e legitimar o atual nível de preços de álcool combustível praticado nos postos paulistas.

Essa medida é uma reivindicação antiga da Unica, que representa mais de 90% do setor produtivo de açúcar e de álcool do Estado, e do Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e Lubrificantes. Desde a criação da CPI dos Combustíveis na Assembléia Legislativa, em dezembro de 2000, o setor produtivo paulista de açúcar e álcool tem procurado colocar o dedo nessa ferida aberta que sangra o quadro institucional brasileiro. No caso específico do álcool, o que incomoda as empresas sérias de produção, distribuição e revenda de combustíveis é a constatação de que o preço adotado na bomba muitas vezes não reflete as remunerações dos agentes econômicos que compõem a cadeia produtiva.

Explico: na última semana de novembro, por exemplo, o álcool hidratado foi vendido pelos produtores de São Paulo a R$ 0,56 o litro (exclusive impostos), enquanto os preços médios registrados na bomba no município de São Paulo (de acordo com a ANP) estiveram em torno de R$ 1 o litro. Se os agentes operassem dentro da normalidade, com o nível de preços ao produtor e carga tributária atuais, o preço médio para o consumidor deveria estar na casa de R$ 1,20 por litro.

A não ser que se acredite que distribuidores e revendedores de combustíveis trabalhem com margem negativa, a única explicação para o preço médio de R$ 1 por litro é a existência de uma grande margem de sonegação nesse mercado. Sonegação que deixa outro indício importante na diferença entre os números de comercialização de álcool hidratado informados pelas usinas ao Ministério da Agricultura e o volume informado pelas distribuidoras à ANP.

O leitor há de perguntar: se o caso é de sonegação, não basta uma fiscalização mais eficiente? Infelizmente não. O fato é que a alta carga fiscal e a atual estrutura tributária com alíquotas diferenciadas permitem uma enorme dose de criatividade por parte dos fraudadores, e a autoridade pública tem tido dificuldade para resolver a questão. No caso do álcool hidratado em São Paulo, é aplicada uma alíquota de 25% de ICMS, mas existem alíquotas menores para vendas interestaduais (12% para os Estados limítrofes e 7% para os do Norte).

As usinas e destilarias paulistas registram nos seus livros fiscais todas as operações feitas com 25%, 12% e 7% de ICMS. No entanto a realidade é que ninguém tem a garantia de que álcool com alíquotas menores, destinado a outros Estados, não seja distribuído dentro de São Paulo. Ou melhor, a diferença entre o informado pelas usinas e o indicado pelas distribuidoras à ANP, associada a preços praticados em alguns postos, evidencia que, na prática, grande parte do álcool vendido em São Paulo não recolhe os 25% de ICMS e outros impostos incidentes, como o PIS e a Cofins.

É isso que nos dá a certeza de que, ao reduzir a alíquota, o governo paulista está no caminho certo para alijar a concorrência desleal e dar legitimidade aos preços cobrados, o que significa dizer que eles não estarão mais maquiados pela sonegação ou fraude fiscal, que é dinheiro roubado da educação, da segurança pública e da saúde da população.

A nova alíquota, de 12%, sobre o álcool hidratado torna não-compensador o risco da fraude e é de esperar que a base da arrecadação aumente. Em resumo, teremos um imposto menor, mas com muito mais gente contribuindo. E o consumidor terá a certeza de que o preço mais baixo que ele pagar será resultado efetivo da concorrência, e não de sonegação. Para nós, produtores de álcool, essa medida transcende a esfera tributária e fiscal. Ela atinge a essência do nosso negócio, na medida em que cria um ambiente institucional que induz à estabilidade.

Neste momento, em que o Brasil vem retomando a produção de álcool e está criando um mercado novo, representado pelos veículos multicombustíveis (rodam com álcool e gasolina), é imprescindível a credibilidade junto ao consumidor, para que não retornemos às ciclotimias de tempos recentes, nos quais a produção e o uso do álcool oscilavam freneticamente entre a angústia e a depressão.

É em nome dessa credibilidade que consideramos a medida do governador de São Paulo extremamente significativa. Ela beneficia milhões de proprietários de carros a álcool, milhares de atuais e futuros proprietários dos veículos de combustível flexível e dá condições de sustentabilidade a um setor econômico fundamental para o Brasil.

É uma atividade econômica que representa 1,2% do PIB nacional, é responsável por um faturamento anual de US$ 8,7 bilhões, gera 1 milhão de empregos diretos, 400 mil só em São Paulo, e movimenta a economia de uma infinidade de municípios brasileiros, contribuindo para a fixação do homem no campo. Isso sem falar no diferencial ambiental positivo representado por esse combustível limpo e renovável, oriundo da cana-de-açúcar, que nos confere liderança no plano internacional quando o assunto é sequestro de carbono e combate ao efeito estufa.

Não bastasse isso, o governador de São Paulo dá uma grande contribuição no campo ético, ao fechar as portas do Estado para a máfia dos combustíveis, tão bem caracterizada pelo relatório final da CPI dos Combustíveis da Assembléia Legislativa do Estado, que embasou o projeto do Executivo, agora lei.

Eduardo Pereira de Carvalho, 65, economista, é presidente da Unica (União da Agroindústria Canavieira de São Paulo).