Trens com trilhas de primeira linha

Jornal da Tarde - 12/5/2002

dom, 12/05/2002 - 12h01 | Do Portal do Governo

Os usuários da linha C da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, que cobre 15 estações, de Jurubatuba a Osasco, viajam ouvindo uma trilha musical invejável, que reúne Gilberto Gil, Chico Buarque, Eric Clapton, John Lee Hooker e Frank Sinatra, compositores escolhidos em enquete feita com os passageiros

Aquela voz não poderia ser real. Não dentro de um vagão triste da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, que saía de Pinheiros rumo à estação Jurubatuba, no meio de uma tarde de terça-feira. Talvez o cansaço de um dia de estudos, o odor nada agradável do Rio Pinheiros e todas aquelas pessoas se espremendo estariam lhe fazendo mal. A voz seria de qualquer um, menos de Frank Sinatra.

Mas era. E, para deleite da estudante Lilian Nascimento, Sinatra cantava ‘New York, New York’. ‘Senti um clima diferente no trem, parecia até que estávamos em Nova York’, recorda Lilian, ainda espantada com a trilha sonora diferente que ouviu saindo dos auto-falantes dos trens da linha C da CPTM.

A linha existe há quatro anos. Há cerca de dois, uma enquete feita com os passageiros quis saber que tipo de música eles gostariam de ouvir. Não se sabe se tudo o que sai das caixas de som dos vagões foi mesmo o que o povo pediu. Mas o certo é que o repertório tem sido de primeira linha.

Na manhã de sexta-feira, a reportagem do JT percorreu um trecho do percurso da linha C da CPTM, que liga Osasco a Jurubatuba – 15 estações espalhadas pelos 37 quilômetros de extensão da linha – para checar o repertório musical que os usuários são brindados durante a viagem. Apareceu de tudo. Eric Clapton cantou ‘Floating Bridge’ e o bluesman John Lee Hooker sussurrou sua clássica ‘Boom Boom’. Jazz, Chico Buarque e Gilberto Gil iam tornando mais leve o percurso feito entre a ruidosa Marginal do Pinheiros e o sempre impróprio para banhistas Rio Pinheiros.

A trilha da linha C, porém, está para sofrer mudanças. Disposto a privilegiar composições de músicos brasileiros, o jornalista e pesquisador paraibano Assis Ângelo, assessor da presidência para assuntos culturais da CPTM, recorreu ao seu invejado acervo particular, com mais de 15 mil títulos, e separou 200 canções feitas entre 1930 e 2001. Escolheu 21 que têm o trem como tema em comum, e produziu, com o patrocínio da empresa Siemens, o disco ‘Um Trem, Uma Saudade’.

Não é um CD para dar lucro em lojas. Foi feito exclusivamente para ser tocado nos vagões. ‘De ruim já chega o que se ouve nas rádios’, diz o estudioso. A compilação, porém, tornou-se uma reunião de obras históricas.

Há desde uma embolada escrita por Attilio Grany e Raul Torres em 1930, chamada ‘Vapô de Ferro’, até o canto falado de Tom Zé em ‘Correio da Estação do Brás’, de 1978. O velho ‘Trem das Onze’, de Adoniran Barbosa, não falta, assim como ‘O Trenzinho do Caipira’, de Villa-Lobos, em rara gravação com Teca Calazans, de 1989.

A trilha, feita graças à boa vontade do pesquisador, revela-se de uma qualidade musical injevável. Resta saber se o rapaz que volta para casa exausto ou se a garota que segue atrasada para a faculdade estão mesmo dispostos a digerir biscoitos tão finos. Sem contar que, dependendo do gosto, a música boa para alguns ouvidos pode se tornar uma tortura para outros.

‘Por mim deveria ter mais tecno e trance music. Em geral, é horrível. Só gosto daquele baião que fala do cara que está esperando a mulher na janela’, reclama o estudante Bruno Chagas.

‘Odeio o que eles tocam. Quando vem música sertaneja quero sair correndo e fico desesperada porque o vagão está fechado’, diz a recepcionista Manoela Grespan, de 21 anos, que jura ser perseguida por músicas bregas sempre que pega um trem.

‘Você é minha salvação. Sempre quis falar para alguém que deveriam tocar mais música pop e não estas coisas que a gente escuta todo o dia’, reclama Nadia Korkischko, amiga de Lilian, a garota que se emocionou com a voz de Frank Sinatra. À sua frente observava a conversa Murilo Andrade, 15 anos.

Não falou nada, nem precisava. Estava compenetrado ouvindo sua dance music particular em um fone de ouvidos maior que suas orelhas.

A recepcionista Sônia Maria, de 48 anos, trabalha em uma clínica de ginecologia e passa, todos os dias, mais de uma hora dentro de um trem da CPTM. Em um canto, solitária, se indignava com as reclamações feitas ao repórter pelos entrevistados durante a viagem para Osasco. ‘Pois eu acho o que toca uma maravilha. Ouço chorinho e música clássica todos os dias. E fico triste quando pego um trem que não tem música ambiente.’

Carlos Alberto Alexandre, de 31 anos, que sai do Grajaú para trabalhar em Pinheiros, acha que uma reformulação no repertório está fazendo falta há um bom tempo. ‘De vez em quando ouço umas coisas que me dá medo.’ Mas, como o amigo Alex Sandro, de 21 anos, percussionista em um grupo de samba e fã de Zeca Pagodinho e Fundo de Quintal, é um entusiasta da música nos trilhos.

‘Depois de um dia ruim, não tem nada melhor. O pessoal tem mesmo que caprichar no som.’

O ‘pessoal do som’ é uma máquina chamada disqueteira, que chegou à linha C junto com os trens trazidos da Alemanha e da Espanha, a partir de 1998.

Não há, ao contrário do que muitos imaginam, uma espécie de DJ dos trilhos.

As tais disqueteiras, com capacidades para até 12 discos, ficam nas cabines de comando de cada vagão. O maquinista só tem o trabalho de apertar um botão e fazer as pessoas ‘viajarem’ com as músicas.

Júlio Maria