Trem leva ao interior em viagem retrô

Folha de S.Paulo - Quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

qui, 11/12/2008 - 11h06 | Do Portal do Governo

Folha de S.Paulo

Uma voz de mulher sensual martela nas caixas de som da estação Júlio Prestes da CPTM, na Luz, centro de São Paulo: “Atenção: trem com destino a Rio Grande da Serra, favor, plataforma número dois”. Mas o suspense é logo descortinado -andaram trocando as linhas de trilho, então se sabe, para que o protagonista do dia pudesse fazer sua viagem-teste.

São dez da manhã de uma sexta-feira de sol e os vendedores ambulantes descem dos trens com buquês de vassouras coloridas que arqueiam suas costas e atrapalham o caminho de quem delas se esgueira, à espera da próxima composição. Mas no lugar do trem da linha 7-Rubi (da Luz a Jundiaí), o que eles encontram é uma locomotiva branca, vermelha e azul, tinindo de tão pintada, com uma chaminé que já anuncia a saída.

E ela puxa dois vagões de aço inoxidável dados pela Associação Brasileira de Preservação Ferroviária, com 170 lugares -a maioria repleta de funcionários. Espera-se que sejam turistas em 2009, quando o expresso turístico sairá da Luz para ir a Jundiaí e à vila de Paranapiacaba, em Santo André.

Ele parte às 10h19, quase fugindo do outro trem que chega, esse comum, com passageiros de pé prensados contra as janelas, enquanto pianos e violinos, trombones e pratos épicos começam a ecoar (na caixa de som). “Caros convidados, bem vindos ao expresso turístico”, diz a voz, masculina, do guia. E a viagem começa, sem pressa.

Por que alguém deixaria a capital para se embrenhar no interior é algo que o maquinista Ivo dos Santos Júnior tem na ponta da língua. “É incrível sair de São Paulo e ver vaca, pasto, a diferença no ar”, diz Santos, o rosto coberto pela sombra que a fumaça da chaminé faz contra o sol; a mão direita segura a manivela que acelera o trem -mas não muito; apesar de “expresso”, o trem anda a 40 km/h.

Rumo a Jundiaí

O olhar cruza o vidro e vê trilhos que se entrelaçam numa dança estranha, entre pedregulhos manchados de óleo, a caminho da estação Barra Funda. A paisagem ganha ares de pós-guerra, com trens abandonados, pichados, enferrujando em terrenos baldios da Lapa.

O violino traz de volta a atenção para dentro, onde o guia dá uma ou outra pincelada na história das estações (a expectativa é que, quando o passeio for oficial, as dicas sejam mais organizadas). Os assentos estofados de couro marrom massageiam as costas, alguns tons acima do amarelo-creme do esmalte que cobre as paredes entre as janelas ovaladas, que lembram veículos dos anos 50.

Por momentos, de tão lento, o trem quase pára. O som calmo, soporífero, matiza a paisagem de Pirituba com um verniz estético: são casas de tijolos à vista de até quatro andares, aglomeradas à beira dos trilhos, e puxadinhos de madeira com canos escorrendo -em cada um, pessoas com olhar curioso e celulares prontos para a foto do dia em que um trem diferente do que a gente pega passou.

Em Jaraguá, limite oeste de São Paulo, vacas surgem ao lado de cavalos que pastam sossegados em pequenos sítios e mesmo em nacos de terra com pés de milho e um barraco de telhas. São ilhas habitadas em meio a áreas de florestas de pinhos e pequenos vales verdes. O ar é puro -não fosse a fumaça negra da locomotiva, que se desprende a cada silvo do trem.

São Paulo está para trás. Mais verde e mais pólos urbanos, com diversos forrós e igrejas evangélicas, vão se seguindo. Uma senhora ajeita os óculos para ver o trem, enquanto caminha pelos trilhos com um saco nas costas. É Várzea Paulista. E a buzina do trem ecoa sem trégua, denunciando a chegada à estação final da linha e do tour: Jundiaí, 1h20min depois.

De cócoras

Enquanto os violões choravam toadas caipiras, as “princesas da ExpoUva”, com longos vestidos bordôs, caminhavam pela estação. O evento serviu para recepcionar o novo expresso, que, acreditam, vai impulsionar o turismo na região, que tem o “circuito das frutas” (agências locais levam o turista a percorrer fazendas e comer frutas no pé); o museu da antiga Cia. Paulista, com seu acervo ferroviário; e a Serra do Japi.

Por isso a fartura de uvas, goiabas e figos ornando mesas de toalha branca, em contraste com as madeiras velhas, paredes de tijolos rachadas e postes enferrujados da estação inaugurada em 1867. Vê-se que aqui é, literalmente, o fim da linha.

Antes da volta, uma parada no banheiro surpreende. O toalete feminino (aqui, “sala de senhora”) traz bancos antigos de madeira para acompanhantes, sob a placa: “É proibida a permanência de homens nesse recinto”. Ao lado, no masculino, não há vasos sanitários, mas buracos de metal branco com apoio para os pés. Um homem abre a porta, com o barulho da descarga atrás, e olha tranqüilo, sem achar nada demais fazer suas necessidades de cócoras.

E assim, ao som caipira da Orquestra de Valinhos, o trem se prepara para partir, com o funcionário (de libré cinza engomada) passando de banco em banco e virando os encostos. “Afinal, vocês não querem voltar de costas”, ironiza. “Mas e a locomotiva?”, pergunta um passageiro. Suspense. E ela passa ao lado, indo se encaixar na nova frente do trem, com um solavanco. Ele silva e anda.

A volta não traz novidades. Mais música clássica a 40 km/ h, mais mato virgem, vaquinhas e barracos de um laranja vivo, agora com mais curiosos fotografando e acenando, felizes.

De volta à Barra Funda, onde o trem pára para descarregar os convidados, uma massa de pessoas aguarda na estação, às 15h. Um dos convidados do expresso cutuca o outro e comenta, rindo: “Quanta gente, deve ter sido nosso trenzinho que atrasou o deles”. A CPTM diz que não houve atrasos.

O passeio deve ser aberto ao público no começo de 2009, segundo a CPTM, provavelmente nos fins-de-semana -forma de agradar gregos e troianos e garantir que o turismo de uns não prejudique a rotina de outros. Informações: 0800-0550121.