Tarsila total

O Estado de S. Paulo – sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

sex, 18/01/2008 - 17h41 | Do Portal do Governo

O Estado de S. Paulo

A peregrinação da pintora modernista Tarsila do Amaral (1886-1973) pelo mundo, especialmente pelo continente europeu, fez crescer seu apetite antropofágico, como mostra a curiosa junção – feita ao acaso, nesta página – de duas de suas pinturas mais conhecidas, a mítica Abaporu (1928) e Antropofagia (1929). Juntando os dois canibais das telas chega-se a uma transposição para o sertão brasileiro da mais famosa pintura do francês Manet, a igualmente ””escandalosa”” Déjeuner Sur l””Herbe (1862-1863). A diferença é que Tarsila não precisou de dois homens vestidos e uma mulher nua sentados na grama para provocar esse escândalo. Bastou o abaporu (do tupi-guarani aba, homem, e poru, que come carne humana) para provocar os conservadores e indicar seu desejo antropofágico de deglutir a tradição pictórica européia, afirmando a identidade nacional na pintura. Antes, ela teve de viajar muito para aportar no Brasil, como prova a exposição Tarsila Viajante, que a Pinacoteca do Estado abre amanhã, com patrocínio do Credit Suisse, Confab Tenaris e BrasilPrev e apoio da Orbital.

A mostra comemora os 80 anos do Manifesto Antropófago (também conhecido como Antropofágico) de Oswald de Andrade, anunciando a publicação do catálogo raisonée de Tarsila, que será lançado em CD (em março) e livro (no segundo semestre) após extenso levantamento da Base 7 Projetos Culturais, responsável pela iniciativa da exposição. No manifesto, o escritor usou principalmente idéias de Freud para decretar uma revolução cultural caraíba, sugerindo que se devorasse o pai da tribo (ou o estrangeiro) para absorver suas qualidades. Sintonizada com as idéias do marido Oswald, um dos animadores da Semana de Arte Moderna de 1922, Tarsila criou, em 1928, ano do manifesto, sua tela mais conhecida, Abaporu, comprada em 1995 (por US$ 1,3 milhão) pelo colecionador argentino Eduardo Costantini e hoje pertencente ao acervo do Malba (Museu de Arte Latino-americano de Buenos Aires), próxima parada da exposição.

O Abaporu volta mudado ao Brasil. É nítido que passou por um processo de restauro na Argentina: o pé do canibal está ligeiramente diferente. Mesmo assim, é preciso comemorar a volta temporária desse ícone que o Brasil perdeu. Protegido por vidro, ele fica ao lado da Negra (1923) e da citada tela Antropofagia na sala principal da exposição, dividida em seis núcleos pela curadora Regina Teixeira de Barros. No primeiro, ela mostra como a milionária Tarsila, filha de um fazendeiro de café, vivia e pintava em Paris quando ainda era aluna da Académie Julien e de Emile Renard. No segundo, a curadora reuniu seus primeiros ensaios modernistas, quando Tarsila se integrou ao grupo dos articuladores da Semana de Arte Moderna de 1922. O terceiro núcleo cobre a produção de 1924, ano do Manifesto Pau-Brasil e da viagem que empreendeu junto ao grupo que acompanhou o poeta francês Blaise Cendrars pelo País. É nesse momento que Tarsila redescobre as raízes coloniais e a paisagem do interior do Brasil, filtrada pelo olhar estrangeiro de Cendrars.

O quarto núcleo é o momento da volta de Tarsila a Paris, em 1925, e de sua viagem pelo Oriente Médio (1926). Com um caderninho de esboços nas mãos, ela registrou sua passagem pelo Egito, Grécia e Israel, chegando ao Líbano, Chipre e Turquia. A exposição apresenta 20 desenhos inéditos desse conjunto. No quinto núcleo, a busca da identidade brasileira iniciada em 1924 vira uma viagem onírica pelo imaginário infantil de Tarsila, resultando numa surrealista justaposição de lendas folclóricas. É o ano do Manifesto Antropófago, que vê nascer o Abaporu e outras criaturas fantásticas. No último núcleo, o sonho acaba com a quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, e o rombo da bolsa familiar que garantia à pintora suas luxuosas viagens.

Tarsila finalmente descobre os operários e os cidadãos de segunda classe de um Brasil a caminho da industrialização. Vendendo obras de sua coleção particular (Léger, Brancusi e outros mestres) para pagar sua viagem à União Soviética, em 1931, ela descobre um outro mundo ao lado do novo marido, o psiquiatra Osório César. É de 1933 o ano da tela Operários, que representa o ponto final da exposição. O engajamento político de Tarsila nessa época é legítimo. Ela chegou a ser presa por conta da defesa de esfomeados como os retratados na linha férrea de Segunda Classe, tela integrante da mostra e pintada no mesmo ano de Operários.

A curadora da exposição não seguiu adiante pela razão que todos sabem: o projeto estético de Tarsila posterior à ””fase social”” não teve a mesma força inspiradora do período Pau-Brasil, que muitos críticos consideram o ingresso da arte brasileira na forma moderna, antecipando a revolução formal da antropofagia. Mesmo assim, ela participou das primeiras bienais e ganhou uma retrospectiva no MAM/SP em 1960, com curadoria da crítica Aracy Amaral, consultora da atual exposição e responsável pelo início da catalogação da obra de Tarsila, que tem mais de 2 mil obras entre desenhos, pinturas e esculturas.

Três Tempos

• Fase Social

Tem início após a viagem de Tarsila à União Soviética, em 1931. Revela uma artista engajada e preocupada com o abismo entre classes sociais, ela que era filha da aristocracia rural, teve professores particulares e estudou na Europa. A busca de uma linguagem formal mais simples que o cubismo reinventado da fase Pau-Brasil leva Tarsila a uma regressão estilística que resulta no realismo dos rostos dos deserdados de Segunda Classe (1933) e Operários (ao lado). A pintora abdica da ousadia antropofágica em nome de uma pintura mais direta.

• Fase Antropofágica

Desta vez inspirado por aquela que seria a pintura mais famosa de sua mulher, Abaporu (1928), que ganhou de presente no dia de seu aniversário, Oswald de Andrade redige o Manifesto Antropófago, em que propõe a canibalização da cultura estrangeira, subvertendo o mito do bom selvagem. O Abaporu é a ilustração perfeita de um procedimento antropofágico que transfere as qualidades do ””estrangeiro”” para o canibal, um herói sem nenhum caráter retratado com pés gigantescos e um apetite voraz, compatível com sua fome ancestral. A curadora da mostra incluiu no segmento telas anteriores à da fase antropofágica, como A Negra, de 1923, que, de alguma forma, simboliza uma apropriação ””bárbara”” da tradição retratista européia, tendo uma descendente de escravos fotografada e depois pintada por Tarsila do Amaral um ano após a Semana de Arte Moderna de 1922.

• Fase Pau-Brasil

Em 1924, Oswald de Andrade publica seu Manifesto Pau-Brasil citando Blaise Cendrars, que tratou o Brasil como uma locomotiva prestes a mudar de linha graças a um negro girando a manivela do desvio rotativo. Era preciso redescobrir o Brasil, perder o complexo de inferioridade com relação ao europeu. Tarsila, aluna de Léger, incorpora suas lições cubistas não para fazer uma elegia da sociedade industrial, mas para recuperar suas raízes. A mostra tem quatro exemplos dessa fase, as telas Mamoeiro, EFCB (foto ao lado), Carnaval em Madureira e Morro da Favela.

Serviço

Tarsila Viajante. Pinacoteca. Pça. da Luz, 2, 3324-1000. 3.ª a dom., 10 h às 18 h. R$ 4 (sáb. grátis). Até 16/3. Abre amanhã, 11 h.