SP criará normas para queima de cana

Valor Econômico - Sexta-feira, dia 11 de agosto de 2006

sex, 11/08/2006 - 10h59 | Do Portal do Governo

Daniela Chiaretti

O front entre ambiente e agricultura abriu nova trincheira nos últimos dias. A prática de queimar a palha da cana-de-açúcar na época da colheita foi suspensa na terça-feira no Estado de São Paulo por determinação da Secretaria de Meio Ambiente (SMA). Tempos de seca somados à fuligem das queimadas formam um coquetel explosivo à saúde pública. É a segunda vez que a determinação acontece neste inverno de clima esquisito. É a segunda vez que acontece na história ambiental de São Paulo.

No episódio mais recente, que vale enquanto a condição meteorológica não melhorar, a suspensão da queima atinge 98 municípios nas regiões de São José do Rio Preto, Ribeirão Preto, Araraquara e Barretos. O índice que disparou o alerta vermelho foi a umidade relativa do ar – ao ficar abaixo de 25% por três dias consecutivos, a queima é proibida.

O parâmetro é o adotado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que considera sinal de perigo quando a umidade relativa do ar oscila entre 30% e 20%. A medida está amparada pela legislação, pela ciência e pelo bom senso. Só tem um problema: não há normas que definam em que momento a suspensão deve ser determinada. Neste ponto, a legislação é genérica.

O “queijo suíço” está na Lei nº 11.241, de 2002, que fala sobre a eliminação gradativa da queima na colheita da cana. O artigo 7º da lei permite à “autoridade ambiental” suspender o uso do fogo quando se constatarem “riscos à vida humana, danos ambientais ou condições meteorológicas desfavoráveis” ou quando a qualidade do ar atingir índices prejudiciais à saúde. Também pode acontecer se os níveis de fumaça colocarem em risco a operação nos aeroportos ou o trânsito nas estradas. O buraco é a falta da definição de critérios para estabelecer a proibição.

Para resolver a questão, o secretário de Meio Ambiente, José Goldemberg, criou uma comissão de técnicos da SMA e da Cetesb, o órgão que monitora a qualidade ambiental no Estado. Eles devem estabelecer os tais limites e produzir uma minuta de decreto a ser assinado pelo governador. O grupo de trabalho se reúne na segunda-feira. “Na semana que vem estará tudo pronto”, confia o secretário.

As regras eliminarão o flanco arbitrário que existe e devem efetivar o que, na prática, já vem sendo feito: três dias de umidade relativa do ar em 25% e os produtores de cana têm que cessar fogo. A multa é salgada – o equivalente a 5001 UFESPs, quase R$ 70 mil. Na primeira vez em que a queima foi suspensa, em 27 e 28 de julho, 14 multas foram aplicadas. Agora foram nove constatações de fogo, mas ainda nenhuma autuação.

“Ninguém reclamou”, diz Goldemberg. Ao contrário. A União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Unica) diz em nota que é parceira no processo e busca “junto às autoridades ambientais”, garantir que “o espírito da lei seja respeitado.” O hábito das queimadas nas lavouras, tão tradicional quanto polêmico, é usado nas culturas de cana para eliminar o mato e a palha e permitir aos trabalhadores a colheita.

As queixas no 0800 da SMA são de gente que não consegue respirar. “O problema é o material particulado”, diz Jesuíno Romano, gerente da divisão que cuida da qualidade do ar da Cetesb. “Mesmo em baixas concentrações, quem é mais sensível já sente”, diz ele. O controle ambiental na região é feito de forma manual e a cada seis dias. A base é uma espécie de filtro que indica a concentração de fuligem. Mesmo meio precário, o sistema mostra o que os habitantes já sabem e sofrem. A poluição se agrava em julho e agosto por uma coincidência perversa: é o pico da queima e fase em que a dispersão de poluentes no ar costuma ser ruim.

Três estudos do Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da Faculdade de Medicina da USP revelam os efeitos nas populações vizinhas às plantações. O primeiro mediu a quantidade de fuligem em Araraquara e o número de inalações por problemas respiratórios no hospital. “Havia aumento de até 10% nas inalações nos dias de queima”, afirma Alfesio Luis Ferreira Braga, um dos pesquisadores do laboratório.

O segundo trabalho rastreou a origem da principal fonte poluente em Piracicaba e o impacto em crianças e idosos atendidos na rede do SUS. Bingo: o material particulado leva a grande parcela de culpa, acima das emissões de carros e indústria. Durante as queimadas, o aumento na internação de idosos foi de 10% e de 20% na de crianças. O terceiro estudo, também em Araraquara, revela o aumento de internações específicas. A hospitalização de quem sofre de asma aumentou 9% com os campos de cana em chamas.

A queima durante a colheita é fundamental para a produtividade, dizem os produtores. Sempre foi assim. Mas a legislação estabelece um cronograma para que, a longo prazo, o fogo seja substituído por máquinas. Em 2002, nas áreas ditas “mecanizáveis”, a queima tinha que ser reduzida em 20%; este ano, em 30% e assim por diante até 2021, quando deve ser esquecida. Nas áreas não mecanizáveis (com declive superior a 12% e terrenos pedregosos, por exemplo) o percentual de eliminação da queima é de 10% em 2011 até ser banida em 2031. “A lei já administra o horizonte de largo prazo”, diz Goldemberg. “O que vivemos agora é uma situação emergencial.”

A suspensão da queima já poderia ter acontecido na seca de 2003. “Mas o controle da SMA não era tão bom como agora”, reconhece Adriana Martrangolo, diretora substituta do DPRN, o departamento que cuida da proteção dos recursos naturais. Os produtores já tinham que comunicar quando e quanto queimariam. Mas o sistema não era digital como agora e os técnicos não davam conta da papelada. Os agricultores têm até o começo de abril para apresentar seus planos de uso do fogo.

O órgão ambiental recebe perto de 2 mil comunicações diárias de pedidos de queima. O pico é de maio a novembro. Provavelmente, há danos também à agricultura. Estudos americanos mostram que a prática produz o que se chama de “mau ozônio” e que o poluente provoca perdas anuais de US$ 2 bilhões em safras agrícolas dos EUA. No Brasil este efeito ainda não é medido.

O clima seco deve continuar por alguns dias; a suspensão, também. “Até terça-feira não há previsão de chuva nestas regiões”, diz a meteorologista Luciene Dias, do Instituto Nacional de Meteorologia.