Serviço público de primeiríssimo mundo. Aqui mesmo

O Estado de S. Paulo - Domingo, 19 de setembro de 2004

seg, 20/09/2004 - 11h51 | Do Portal do Governo

Serviço público de primeiríssimo mundo. Aqui mesmo
Nas ilhas de excelência, jovens não querem deixar Febem, sem-teto têm quem pague o aluguel e delegacia devolve auto-estima a mulheres

CÉLIA CURTO

‘Eu ainda não estou preparado para sair, quero ficar mais um tempo aqui na Febem.’ Para E.C.S.J., de 18 anos, está perto o dia em que trocará a unidade de Pirituba pela liberdade, o convívio com a família, a vida que diz não querer agora. E. é um dos 83 garotos dessa Febem, inaugurada em 2002, uma das que oferecem melhores condições de educação e recuperação para os internos, segundo especialistas.

‘A polícia nunca entrou aqui porque nunca tivemos uma rebelião ou um tumulto’, conta, orgulhoso, o diretor, Caio Rubens de Mello Castro. Ainda com a tinta original com que recebeu os primeiros internos, em janeiro de 2002, as paredes são limpas e não têm um risco. Nos quartos, as camas estão arrumadas, roupas dobradas, banheiros limpos. Há seis refeições por dia, oficinas e cursos para todos, algo quase inacreditável.

Meninos menos rebeldes que os das outras unidades, dedicação dos funcionários, condições mais favoráveis? Muitas podem ser as explicações para serviços públicos que dão tão certo que provocam situações inusitadas – os vizinhos da Febem de Pirituba, que fizeram pressão contra a abertura da unidade, viraram parceiros em programas da instituição.

‘Digo sempre à equipe que atendemos mulheres, cada uma com uma história, todas únicas, não uma massa de gente igual’, diz a delegada Maria Teresa Gonçalves Rosa, responsável por outro centro de excelência, a 1.ª Delegacia de Defesa da Mulher (DDM).

São mulheres com histórias difíceis de ouvir e entender. ‘Fui espancada nove anos seguidos pelo meu marido e só saí quando ele disse que a casa tinha caído para mim, que ia pegar uma arma com um bandido e me matar. Saí correndo enquanto ele quebrava o telefone, mas deixei meus filhos lá’, afirma uma vítima de violência doméstica atendida pela delegacia. Hoje ela mora com as crianças no Abrigo ComVida, mantido pela Secretaria da Segurança Pública para mulheres em situação de violência e risco de vida. ‘Encontrei aqui uma oportunidade de salvar a integridade moral, na hora em que havia decidido morar na rua, virar mendiga’, lembra.

A dica da delegacia, dada por um amigo do marido que não sabia bem como ajudar, rendeu mais do que um abrigo provisório. Foi o apoio para recomeçar.

‘A terapia que faço aqui me ajuda na auto-estima, a viver de novo.’

Sobrevivência – A vida também mudou esta semana para uma família na Cachoeirinha, zona norte. No colo da mãe, Érica Maria de Almeida, uma operadora de telemarketing de 24 anos, chegou Fernando de Almeida Castro, esperado para meados de outubro.

Na 25.ª semana da gestação, que já apresentava complicações, a bolsa de Érica estourou, pondo em risco a vida do bebê. Ela ficou duas semanas internada na Maternidade-Escola da Vila Nova Cachoeirinha, referência em gestações de risco em São Paulo. Fernando nasceu em 5 de julho, de 6 meses, com 32 centímetros e 870 gramas. Foram 45 dias de UTI e mais alguns dias na Enfermaria Canguru, que ajuda mãe e filho na adaptação.

‘Temos tudo, até uma fonoaudióloga que auxilia o nenê a aprender a mamar no peito’, explica Érica, com Fernando no colo. Agora, ele tem 1,9 quilo e pode trocar o hospital pelo berço de casa e os cuidados médicos pela companhia do irmão, Victor, de 7 anos, e do pai, Leandro, de 30. ‘Se eu não estivesse aqui, acho que ele não tinha sobrevivido.’

O casal de catadores de papelão Rosângela Aparecida de Oliveira e Isaac Fazolli Osório, ambos de 38 anos, também deve a vida a um serviço público de excelência. Moradores de rua por anos, são soropositivos e têm tuberculose.

Conheceram-se e perambularam durante três anos pelas ruas de Santo André. E foram, aos poucos, aderindo aos programas da Secretaria de Inclusão Social e Habitação, oferecidos insistentemente, noite após noite, pelos agentes dos Departamento de Assistência Social. O pacote inclui refeições, abrigos, atendimento de saúde, grupos de ressocialização, recolocação profissional e até o pagamento do aluguel.

Assim, o casal trocou o carrinho onde dormia por uma casa de três cômodos, na periferia. A prefeitura paga há quatro meses os R$ 150,00 do aluguel – ajuda que será mantida até que eles andem com as próprias pernas, conforme determina o programa social. A 100 metros, em outra casa mantida pela prefeitura, vivem Cristiana, de 18 anos, filha de Rosângela, e o companheiro, Edson dos Santos, de 19, além do filho Lucas, de 2 meses. Os jovens lutam contra a dependência de drogas e sabem que só terão o auxílio do serviço social se não voltarem para o crack. ‘A gente agora só fuma cigarro’, diz Edson. Móveis doados, chuveiro, filhos de volta, netos no colo, laços familiares refeitos, Rosângela quer agora emprego fixo e saúde para viver a nova vida. ‘Se tivesse ficado na rua, teria morrido.’

Roseira – A 500 metros de um colégio com muros pichados e vidros quebrados, os alunos da Escola Estadual Mathias Aires, no Moinho Velho, zona norte, estudam em um cenário bem diferente. Roseiras floridas no jardim, murais espalhados pela escola com mensagens sobre fraternidade e respeito – sempre assinados pela diretora com a frase ‘Amo vocês’ -, uma comida que cheira do portão da rua. ‘Tive de dizer: ‘Mãe, infelizmente a comida da escola é melhor que a sua”, conta, rindo, Victória Escuder de Lima André, de 8 anos, da 2.ª série do ensino fundamental.

Os alunos, 1.160 crianças e jovens, não depredam a escola, reclamam de colegas que falam durante as aulas e agradecem por estudar lá e não no colégio vizinho. ‘Aqui, se um aluno faltar três dias às aulas, eu vou até a casa dele perguntar pra mãe o que está acontecendo. Na semana passada, descobri que uma menina de 12 anos estava faltando pra ir beijar’, diz a diretora, Marisa Bruno Russo Negrizolo, há 13 anos na Mathias Aires. ‘Não tenho sorte com os professores, tenho linha de trabalho. Não quero agradar ao secretário, ao governador. Quero é educar minhas crianças.’