Schwitters e sua catedral de despojos

O Estado de S.Paulo - Terça-feira, 16 de outubro de 2007

ter, 16/10/2007 - 12h20 | Do Portal do Governo

O Estado de S.Paulo

O sagrado, para Kurt Schwitters, estava ligado intimamente à noção de realidade. Ou estava aqui ou não estava em lugar nenhum. Tudo o que era sagrado para ele, dizia, estava em sua instalação Merzbau, cuja réplica pode ser vista, a partir de hoje, na Pinacoteca do Estado. Como se disse anteriormente, ela foi destruída durante um bombardeio na 2ª Guerra, cinco anos antes da morte do artista alemão. Schwitters já se encontrava na Inglaterra, onde morreria cinco anos depois, em 1948, sem nunca mais ver a obra que ele mesmo classificou de ‘autobiografia construída’. À maneira do homem de teatro Antonin Artaud, para Schwiters não havia separação entre arte e vida. Sua Merzbau era uma espécie de catedral gótica construída para uso pessoal.

Essa não é uma interpretação crítica. É um testemunho pessoal do artista, inscrito num texto intitulado Ich und meine Ziele (Eu e Minhas Metas), de 1931. Nele, Schwitters explica o processo embrionário do Merzbau, cujo centro é uma simbólica coluna que cresce como uma árvore invadindo todos os oito cômodos do estúdio do artista, no número 5 da Waldhausenstrasse, em Hannover, crescendo indefinidamente em direção ao céu como a coluna infinita de Brancusi. Quando o artista partiu para a Noruega, em 1937, não conseguindo visto para os Estados Unidos, essa coluna – que ele chamou de S‰ule des erotischen Elends (Coluna da Miséria Erótica) – já havia invadido o teto e o balcão no andar térreo.

Por que uma fálica coluna com um comentário erótico era associada no texto a uma catedral secular de inspiração gótica é assunto para psicanalistas, mas é provável que Schwitters não encarasse sua instalação como uma manifestação de caráter puramente formal. Tanto que, entre os nichos que abrigavam os objetos doados por amigos, havia espaço para artistas visuais como Hans Arp, escritores como Goethe e arquitetos como Mies van der Rohe, além de uma curiosa caverna dedicada à memória de assassinos (os nazistas?). Reminiscências pessoais misturam-se, enfim, às históricas nessa protoinstalação que inspiraria, décadas mais tarde, os ambientes penetráveis criados pelo brasileiro Hélio Oiticica na época do tropicalismo, isto é, nos anos 1960.

Como Oiticica, que trocou a experiência da pintura pelo contato direto com o espectador, transformando-o em agente (um parangolé, sua capa para ser vestida, não existe sem essa parceria), Schwitters também largou as telas e tentou outras formas de expressão, deixando-se influenciar por outros movimentos (cubismo, construtivismo russo) além do dadaísmo. Afastou-se especialmente do programa ideológico do último. Na exposição, organizada de forma cronológica, podem ser vistos desde exemplares de sua pintura figurativa até obras dos anos 1940. Seria desejável que também a produção poética de Schwitters tivesse sido privilegiada na retrospectiva. O Kulturfest ainda tem tempo para programar um recital de poesia Merz, talvez com trechos de seu controvertido poema An Anna Blume (Para Anna Blume), de 1919, que sintetiza seu manifesto Merz na poesia – uma colagem que não respeita sintaxe, destrói a lógica semântica e resgata dialetos do limbo para contar a história de uma musa de cabelos amarelos (que, na verdade, são azuis). E, por que não, um recital de música com sua Ursonate (Sonata Primordial), poema sonoro não-verbal concebido como peça musical?

Esse trânsito interdisciplinar é um jeito sinestésico, ‘Merz’, de estar no mundo. O conceito evocado automaticamente para se falar de Schwitters é o wagneriano Gesamtkunstwerk (obra de arte total), não num sentido estritamente formal, uma vez que se trata mais de arquitetura social feita com os restos da civilização. Schwitters usa ‘tudo o que a obra de arte exige’, ou seja, de materiais nobres a dejetos da sociedade industrial, antecipando as práticas dos criadores da arte povera. Mesmo incompreendido, ele sabia que deixava uma herança.

(SERVIÇO)Kurt Schwitters – O Artista Merz. Pinacoteca. Praça da Luz, 2, 3324-1000, metrô Luz. 3.ª a dom., 10 h às 18 h. R$ 4 (sáb., grátis). Até 2/12