Quilombos, uma velha dívida

Jornal da Tarde - Artigo - Terça-feira, 25 de novembro de 2003

ter, 25/11/2003 - 9h45 | Do Portal do Governo

Jonas Villas Bôas *

Entre as muitas preocupações que pautaram a Assembléia Nacional Constituinte – eleita em 1986 com a missão de elaborar uma Constituição que sepultasse de vez nosso passado autoritário e assegurasse a todos os brasileiros os direitos de cidadania – estava a reparação da mais grave injustiça histórica do País: a escravidão. Mas como reparar um mal que deixou cicatrizes tão profundas em nossa sociedade? É claro que qualquer coisa que se fizesse seria pouco diante de herança tão terrível, responsável, ainda nos dias de hoje, pela marginalidade à qual foi relegada uma parcela significativa da população negra, que tem resistido bravamente ao processo de exclusão social.

Mesmo assim, foi grande o avanço proporcionado por nossa Carta Magna, promulgada em 1988 e muito apropriadamente chamada de Constituição Cidadã. No artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, ela determina que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

Em consonância com essa intenção de resgate da cidadania, o próprio conceito de quilombo foi ampliado, consolidado pela Associação Brasileira de Antropologia como aquele “utilizado para designar um legado, uma herança cultural e material que lhe confere uma referência presencial no sentimento de ser e pertencer a um lugar e a um grupo específico’.

Assim, os remanescentes de escravos, organizados em quilombos, passariam a contar com segurança jurídica para continuar vivendo e produzindo nas terras legadas por seus antepassados. Legado este de luta e resistência à opressão. Em cumprimento ao preceito constitucional, quatro comunidades quilombolas já foram tituladas no Estado de São Paulo e outras três estão em vias de também receber os títulos. A titulação foi facilitada pelo fato de ocuparem terras devolutas estaduais. Mas temos outras nove comunidades já oficialmente reconhecidas como remanescentes de quilombos, além de várias em vias de reconhecimento, que ocupam terras particulares, dependendo, portanto, da solução por parte do governo federal.

Em todo o País, pouco mais de 1% das comunidades recebeu títulos de domínio das áreas por elas ocupadas. Segundo dados da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, são apenas 29, num universo de 2 mil. Ou seja, em 15 anos da promulgação da Constituição Federal, muito pouco se fez.

A demora no reconhecimento desse direito pode ter graves conseqüências em muitos casos. Não raro, o território ocupado por remanescentes de quilombos é alvo de disputas violentas. É o caso da comunidade de Porto Velho, no município paulista de Iporanga, região do Vale do Ribeira. Os moradores dessa comunidade, já oficialmente reconhecida como remanescente de quilombo pelo Governo do Estado, encontram-se em disputa pelo território com um fazendeiro, que se diz dono das terras que os quilombolas cultivaram por inúmeras gerações. O conflito culminou, este ano, na demolição da igreja da comunidade, um atentado à cultura e à fé desses cidadãos.

O que é necessário para que se faça cumprir o mandamento constitucional é encontrar uma alternativa que viabilize a arrecadação de áreas para titulação em nome das comunidades quilombolas. Atualmente, essa prerrogativa é da Fundação Cultural Palmares, entidade ligada ao Ministério da Cultura, que não tem recursos para tanto. Uma solução possível e que, ao que tudo indica, está sendo seriamente analisada pelo governo federal é a transferência dessa responsabilidade para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Em São Paulo, o reconhecimento oficial dessas comunidades, por meio de laudo antropológico, é feito pela Fundação Instituto de Terras (Itesp), entidade vinculada à Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, conforme a Lei Estadual nº 9.757/97 e Decreto nº 42.839/98.

Esse é o primeiro passo para a titulação. No Estado, o Itesp realiza trabalhos em 28 comunidades. Dessas, 16 já foram reconhecidas, 10 estão em processo de reconhecimento e duas foram identificadas para o reconhecimento. Além disso, existem outras nove comunidades apontadas para identificação.

São comunidades detentoras de um rico e diversificado patrimônio cultural, e que primam por uma convivência harmoniosa com o meio ambiente. A maioria está inserida em regiões de grande importância ambiental. É o caso das comunidades do Vale do Ribeira e da comunidade de Caçandoca, em Ubatuba, cuja existência impediu que uma área de mata atlântica bastante preservada cedesse lugar a um condomínio fechado. A dívida do poder público com esses brasileiros, portanto, cresce a cada ano. Urge pagá-la com o mínimo previsto na Constituição.

* Jonas Villas Bôas é diretor-executivo da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) e presidente da Associação Nacional dos Órgãos Estaduais de Terras (Anoter)