Por que se mata menos em São Paulo

Veja São Paulo - 6 de julho de 2005

sáb, 02/07/2005 - 18h07 | Do Portal do Governo

Embora ainda seja alto, o número de homicídios caiu 40,6% na cidade em cinco anos. Investimentos na
polícia e trabalho de ONGs na periferia são as principais causas da queda

Rodrigo Brancatelli

Os índices de criminalidade na cidade de São Paulo são alarmantes há muito tempo. Durante toda a década de 1990, as taxas de homicídio paulistanas estiveram entre as mais altas do mundo. O distrito do Jardim Ângela, na Zona Sul, chegou a ser considerado, em 1996, o mais violento do planeta pela Organização das Nações Unidas. Mas estudos recentes sobre a ocorrência de assassinatos na capital trazem finalmente uma notícia animadora nessa área. De acordo com a Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), do Governo do Estado, foram registrados 6.638 assassinatos em 1999. No ano passado, foram 3.944. Trata-se de uma redução expressiva de 40,6%. Além da conscientização da sociedade para o problema, essa mudança é fruto de dois trabalhos distintos e complementares. De um lado, houve incremento nos investimentos em segurança pública. A polícia está, além de mais presente, mais bem equipada que dez anos atrás. De outro, cresceu na periferia da metrópole a atuação de organizações não-governamentais que oferecem alternativas econômicas e de lazer à população de baixa renda.

Pelo menos 130 ONGs atuam nas regiões mais pobres de São Paulo. Montam cursos profissionalizantes, oficinas para crianças e adolescentes, centros de convivência para idosos e creches onde mães podem deixar os filhos enquanto trabalham. ‘A melhora no aparelhamento da polícia é notável, mas só a repressão não funciona’, diz Jorge Werthein, representante no Brasil da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Pesquisa realizada pela Unesco mostra que os assassinatos em São Paulo caíram 19% entre 1999 e 2003. A diferença em relação aos dados do Seade pode ser explicada porque o estudo da ONU não leva em conta os números de 2004. Pelos dados da fundação estadual, entre 2003 e 2004 a queda nos assassinatos foi de 21%.

‘Sem uma parceria efetiva com a comunidade, o governo pode fazer muito pouco’, reconhece o secretário de Segurança Pública do Estado, Saulo de Castro Abreu Filho. Segundo ele, foram investidos cerca de 80 milhões de reais em equipamentos nos últimos três anos. Isso significou um acréscimo de 8 300 viaturas para as polícias Civil e Militar, além da contratação de mais 18.000 policiais. Houve também a formação de um imenso banco de dados com os índices de criminalidade de cada bairro, e o atendimento foi informatizado. Nos últimos dois anos, o número de prisões cresceu 5%. Um acordo com a ONG Instituto São Paulo contra a Violência possibilitou a criação, em 2000, do Disque-Denúncia, um serviço gratuito pelo telefone 181 para receber denúncias anônimas. Neste ano, foram mais de 41.000 ligações. ‘Por causa das informações prestadas pela população, conseguimos dobrar o número de operações em locais perigosos’, diz o secretário. Até hoje, o Disque-Denúncia calcula ter sido responsável pela solução de 14.000 casos. Há ainda a campanha de desarmamento, que tirou de circulação, desde julho do ano passado, 87.000 armas em todo o estado (estima-se que haja 1,5 milhão de armas apenas na cidade). ‘Nesse caso, é muito cedo para sabermos se essas campanhas irão surtir algum efeito’, afirma o pesquisador Fernando Salla, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo.

O levantamento do Seade aponta a taxa de homicídios por 100.000 habitantes em cada um dos 96 distritos da capital. É aí que aparecem as enormes disparidades paulistanas. Enquanto no distrito da Consolação essa taxa é de 1,96 assassinato – igual à de Paris –, no Brás salta para 91,36. A estatística leva em conta a população de cada bairro. É uma matemática complicada. A Sé, por exemplo, tem praticamente a mesma taxa de homicídios por 100.000 habitantes que Parelheiros (60,09 e 65,89, respectivamente). Em números absolutos, no entanto, na Sé (com 18.307 habitantes) houve onze assassinatos em 2004, enquanto Parelheiros (121.414 habitantes) teve oitenta.

Os bairros com mais motivos para comemorar são justamente aqueles que, nos anos 1990, sofreram os piores índices de criminalidade. No Jardim Ângela, as mortes vêm caindo ano a ano. Em 1996, foram registrados ali 385 assassinatos. Em 2004, 172. É uma queda de 55%. ‘Não adianta ficar rezando para o problema desaparecer’, diz o padre irlandês Jaime Crowe, responsável pela paróquia Santos Mártires. ‘Os crimes só diminuem após um longo trabalho com a população.’ Com a ajuda de moradores, foram criados uma creche, um centro para idosos, cursos profissionalizantes para donas-de-casa e diversas atividades para adolescentes, de aulas de hip hop a oficinas de pizzaiolo. ‘Aqui na região há cerca de 58.000 jovens, e pelo menos 18.000 deles estão abaixo da linha de miséria. Se não fizermos nada, são candidatos a uma vaga na Febem ou no cemitério.’ Com o alerta da ONU, a polícia passou a prestar mais atenção no Jardim Ângela. Para ganhar a confiança da população, a PM investiu no policiamento comunitário. Cada novo policial que chega para trabalhar ali é apresentado à vizinhança. Até a última terça-feira, nenhum assassinato havia sido registrado na região por setenta dias seguidos.

Em Heliópolis, favela que surgiu em meados dos anos 1970, a situação é parecida. Na década de 1990, cerca de cinqüenta pessoas morriam assassinadas na área anualmente. Em 2004, foram dezenove. Um dos líderes mais atuantes é o metalúrgico João Isaías. Fundador da União de Núcleos, Associações e Sociedades de Moradores de Heliópolis e São João Clímaco (Unas), ele teve um dos filhos morto pelo tráfico. ‘Busquei o corpo dele na rua, cheio de buraco de bala’, lembra. ‘Podia chorar em casa, mas resolvi trabalhar para que outras famílias não sofressem o mesmo.’ Atualmente, a Unas oferece oficinas profissionalizantes, cursos para adolescentes e creches com capacidade para atender 471 crianças. O único posto policial da favela foi implantado com insistentes pedidos da entidade. No ano passado, Isaías conseguiu mais uma vitória. Depois de um telefonema para o arquiteto Ruy Ohtake, um grupo de empresários e uma fabricante de tintas patrocinaram a pintura de 150 casas. Hoje, duas ruas exibem novo visual. É claro que, isoladamente, uma medida como essa não é capaz de fazer com que os crimes caiam. Mas tem um efeito positivo sobre a auto-estima dos moradores e pode desencadear outras ações semelhantes.

A boa notícia da diminuição no número de assassinatos não deve servir para mascarar um problema que continua sendo grave. Se comparada com a de outras grandes cidades do mundo, a taxa de homicídios em São Paulo permanece altíssima. No ano passado, foram assassinadas 36,93 pessoas a cada 100.000 habitantes. Em Nova York, esse número é de sete. Em Bogotá, que dez anos atrás registrava setenta homicídios por 100.000 habitantes, é de 24. Crimes como seqüestros e roubo de veículos também caíram. Já o tráfico de drogas, os roubos e os furtos aumentaram. ‘Estamos longe de uma situação ideal’, diz Fernando Salla, da USP. ‘Temos várias questões para resolver antes de comemorar, como a lentidão e a ineficácia da Justiça.’ Para o sociólogo Caio Secci Vasconcelos, que estudou a queda da criminalidade na Colômbia, é preciso centrar as ações nos jovens com idade entre 15 e 24 anos. ‘Eles são os mais afetados’, afirma. Se analisada somente essa faixa etária, a taxa de homicídios por 100.000 pessoas em São Paulo sobe para 110. É um índice três vezes maior que a média da população. Ou seja, ainda há muito, muito para fazer – mas o importante é constatar, como mostram os trabalhos da Unesco e do Seade, que a situação já foi bem pior.