Política cultural e desenvolvimento

Folha de São Paulo - Tendências/Debates - Sexta-feira, 23 de abril de 2004

sex, 23/04/2004 - 9h27 | Do Portal do Governo

CLÁUDIA COSTIN

A favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, está há semanas no noticiário por conta da violência associada ao narcotráfico. Há alguns meses soubemos, também pelos jornais, da grave situação que vive o Haiti, que tem 70% da sua população em idade de trabalhar desempregada e, não por acaso, vê sua parcela mais jovem freqüentemente integrando as inúmeras gangues existentes no país. O mesmo sucede em alguns países africanos, onde a economia não consegue gerar renda para sua população jovem, que vai buscar então trabalho com os chamados ‘warlords’, senhores da guerra, que assaltam viajantes e saqueiam vilarejos -como bem mostra o jornalista Kapuscinski em seu livro, recentemente lançado no Brasil, ‘Ébano – Minha vida na África’ (Companhia das Letras) .

Reporto-me a esse cenário sombrio para mostrar o que ocorre com um país que não se desenvolve. Não há política social efetiva se a economia não gera trabalho para as pessoas e o crescimento populacional supera a capacidade de geração de empregos. Se o país não cresce, quando os jovens chegam em idade de entrar no mercado de trabalho vêem-se jogados na pobreza ou, ainda pior, na desesperança, mãe de todas as violências.É nesse sentido que se há de pensar em um desenvolvimento inclusivo, que possa criar oportunidades para a realização do potencial de todos.

Ora, por que é justamente a camada mais jovem da população que, ao se desesperar, recorre a alternativas centradas na violência? Porque o jovem tem, para além de maior força física, um forte desejo de se destacar entre seus pares, de deixar sua marca no mundo. Não é à toa que a maior parte dos movimentos de transformação social busca entre os jovens os seus mais ardorosos adeptos.Também é de suas fileiras que o narcotráfico recruta seus ‘funcionários’. Um jovem com uma arma e o ‘cargo’ de sátrapa de um narcotraficante certamente consegue uma notoriedade que funções como a de motoboy não dão.

Uma transformação nesse cenário exige a atuação conjunta de várias agências e instituições de governo e da sociedade civil. É chave garantir a retomada do crescimento, sem o que não há alternativas para geração de renda que permitam a recuperação da esperança. Mas é fundamental, também, uma política social inclusiva, que contemple o desejo de crescer e ser reconhecido que habita corações e mentes dos jovens. Um adolescente que freqüenta a escola, tem um trabalho e vive seu tempo de lazer com alguma atividade que lhe dê, de forma construtiva, satisfação e destaque tem certamente menos chance de se envolver com violência.

A Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo optou por participar desse esforço ao construir uma política cultural que considera o ordenamento da ação do Estado nesse terreno por faixa etária, e não por linguagem artística. No caso da juventude, a proposta é criar instrumentos para o protagonismo cultural, como centros culturais, oficinas, apoio a teatro amador -instrumentos de educação para o lazer que aliem boa qualidade cultural à possibilidade de se destacar longe dos caminhos da violência.
O cotidiano de exclusão, presente na vida de uma parcela significativa de nossos jovens, é mais acentuado nas grandes metrópoles, como São Paulo. Nelas, os bolsões de pobreza, localizados em sua maioria na periferia da cidade, acabam se transformando em criadouros de violência, exigindo do Estado atenção especial.

Para enfrentar com mais efetividade a situação da vulnerabilidade entre jovens nessa região está sendo preparado o programa Fábricas de Cultura, que vai estabelecer centros culturais em áreas que contam com poucos ou nenhum equipamento público para o desenvolvimento de atividades artísticas e de entretenimento da população. A idéia é abrir espaço para as diferentes manifestações culturais de que os jovens já são portadores, dados seu acervo étnico e preferências artísticas, e oferecer-lhes novas opções de estilos que permitam escolhas a partir de uma base mais ampla. O rap convivendo com Bach, a leitura das obras consagradas da literatura com o Ferréz.

As Fábricas de Cultura serão instaladas em sete distritos de São Paulo selecionados a partir de um indicador especialmente desenvolvido para o projeto, o Índice de Vulnerabilidade Juvenil (IVJ), que mede o grau de exposição da juventude à violência. Os distritos que abrigarão esses centros têm como triste característica comum um IVJ dos mais elevados da capital. Caberá a 153 entidades de moradores a tarefa de ajudar a mapear os desejos da população local e, com o suporte do programa, desenvolver atividades culturais que complementem o que será feito nas fábricas.

O projeto, desenvolvido com apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento, prevê ainda a participação da Fundação Seade na montagem de um sistema transparente de acompanhamento e avaliação de resultados, para que a população possa ver como ele está evoluindo. O monitoramento de projetos culturais e de seu impacto no entorno ainda é muito incipiente e o resultado de experiências como essa poderá beneficiar não só esse programa, como o desenho de propostas futuras.

A intenção é fazer dos centros algo muito além de simples áreas de convivência com a cultura, é dar acesso aos bens culturais produzidos pela humanidade e, ao mesmo tempo, incentivar a produção cultural local, em toda sua diversidade, tornando as pessoas protagonistas das manifestações culturais, em vez de simples espectadoras. Com isso, reduz-se expressivamente o espaço para ‘líderes’ como o Lulu ou para situações como as aproveitadas pelos senhores da guerra. O Haiti não é aqui.

Cláudia Costin, 47, mestre em economia pela Escola de Administração da FGV-SP, é a secretária da Cultura do Estado de São Paulo. Foi ministra da Administração Pública e Reforma do Estado (governo Fernando Henrique Cardoso).