Planetário de palavras-estrelas

Valor Econômico - sexta-feira, 17 de março de 2006

sex, 17/03/2006 - 14h15 | Do Portal do Governo

A língua portuguesa passa a ser explicada, cantada e celebrada num museu pós-moderno totalmente dedicado a ela

Por Marília de Camargo Cesar

De São Paulo

Poucos substantivos podem causar mais sonolência e enfado do que o termo “Museu da Língua Portuguesa”. O título evoca bustos marmóreos de Camões e Euclides da Cunha, óleos sobre o descobrimento repletos de índios nus e edições antiqüíssimas de Pero Vaz de Caminha ou Gonçalves Dias. Nada mais longe da realidade.

Esta é uma outra viagem. Na verdade, são várias. A primeira é rever o próprio local deste novo museu, que será inaugurado em São Paulo, na segunda-feira. Voltar à Estação da Luz, onde está situado, depois de muito tempo, e ver o prédio todo imponente, limpo e restaurado, é o primeiro sinal de que o programa começou bem. Olhar ao redor e perceber a vizinha ilustre, a Pinacoteca, valorizada e cheia de visitantes, e ainda os jardins do Parque da Luz, convidando a um passeio aparentemente seguro, completam a sensação de que realmente alguma coisa mudou no centro histórico de São Paulo. Mudou para melhor. O museu complementa o cenário e vai dar à região um toque pós-moderno. Depois de quatro anos de investimentos e muita poeira voando sobre os trilhos da estação, ele está pronto para ser aberto ao público. Foram R$ 37 milhões colocados no projeto, capitaneado pela Fundação Roberto Marinho, Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, Ministério da Cultura e o apoio de empresas como IBM do Brasil, Petrobras e Correios.

 O museu foi instalado no prédio da estação onde antigamente funcionavam os escritórios de administração da empresa. Um elevador de vidro leva aos três andares que compõem o museu. Seja qual for o trajeto, começando de cima ou de baixo, o visitante será sempre surpreendido e pode ir pronto para se emocionar.

Comecemos esta viagem particular pelo alto, pelas luzes psicodélicas que invadem as palavras e as transformam em estrelas. É a Praça da Língua, um ambiente que lembra um planetário e onde, durante 20 minutos, o espectador é bombardeado por versos narrados por vozes ilustres, projeções de imagens e letras que tratam de temas universais, como o amor e o exílio. Estando-se nas arquibancadas laterais da sala, que tem o pé direito de 13 metros e uma mansarda – um telhado de várias águas dispostas irregularmente – é possível admirar e relembrar as poesias que ficaram num tempo em que havia tempo para decorar poesias. Versos eternos, como os da “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, declamado por Chico Buarque, ou a versão de Murilo Mendes, lida por Murilo Marcondes de Moura, muitos Drummonds e Pessoas em todas as suas identidades.

Mas a voz do rapper Rappin Hood , um grito contemporâneo e tão urbano quanto o próprio museu, faz a trilha sonora ideal para este planetário de palavras-estrelas. Ele canta com intimidade o ácido Gregório de Mattos: “Que falta nesta cidade?… Verdade. Que mais por sua desonra?… Honra. Falta mais que se lhe ponha?… Vergonha. Verdade, honra, vergonha”. Pode faltar tudo isso nesta cidade, mas definitivamente não falta mais um lugar para cultuar as palavras e a língua em que o famoso Boca do Inferno proferia seus juízos.

Os versos narrados e projetados podem também ser pisados no chão, onde foram impressos num grande círculo de vidro. Aqui, então, no fim do show, o planetário vira pista de dança.

O viajante desce ao segundo piso e a sensação futurista permanece. Ao seu lado esquerdo, um painel de 106 metros de comprimento, talvez o maior do mundo exposto em um museu, projeta imagens que ilustram a importância da língua portuguesa no cotidiano das pessoas. São 11 filmes de seis minutos produzidos por TV Zero, Magnetoscópio e Já Filmes. Em um deles, a parede fica toda tomada por um trem da CPTM. É como se o museu se transformasse na própria plataforma da Estação da Luz.

Ali ao lado, as crianças vão gostar de brincar com os totens interativos que mostram a influência de diversas línguas na formação do português falado no Brasil. Telas de computador ficam cuspindo palavras que podem ser dissecadas quando se toca na tela. Sabe-se, assim, que bunda vem do idioma quicongo, que, por sua vez, pertence ao grupo lingüístico banto. “Existem na África cerca de 300 línguas de origem banto”, informa o totem eletrônico.

A tecnologia de ponta é o ponto alto deste museu. A IBM, que foi a primeira empresa a aderir ao projeto logo em sua concepção, apostando em seu potencial educativo, fornece todos os computadores que formam o cérebro da casa e das salas onde serão formados professores do ensino estadual. Mais de 4 mil deles passaram por cursos de reciclagem e a agenda promete intensificar-se com a abertura do novo espaço.

Numa das salas que serão utilizadas para treinamento (e que também será aberta ao público quando não houver cursos), 35 computadores novinhos contrastam com as paredes recuperadas com a pintura original – que pode ser constatada a partir da camada que foi descoberta depois das pesquisas estratigráficas. Nesta ala do museu, toda a parte de marcenaria foi restaurada e mantidos os encantadores ladrilhos hidráulicos. Ao longo de toda a obra, foram restaurados 4.230 m2 de alvenaria, 123 esquadrias e cerca de 400 elementos artísticos diferentes. O projeto arquitetônico levou a assinatura de Paulo e Pedro Mendes da Rocha.

“Este é um conceito revolucionário. É inovador na forma e no conteúdo. Um museu focado numa língua é uma idéia muito difícil de ser executada, mas este projeto está totalmente alinhado com a estratégia da empresa, que tem foco em tecnologia e em educação”, afirma Sirlene Toledo, executiva de programas de responsabilidade social da IBM.

A própria Sirlene, que acompanhou toda a evolução e os trabalhos do museu, emociona-se a cada visita. Nesta última terça-feira, ao passar pela última vez antes da inauguração pelo pavimento que abrigará as mostras temporárias, ela admirava a obra de Bia Lessa feita para homenagear Guimarães Rosa, na exposição “Grande Sertão: Veredas”, que celebra os 50 anos do romance.

É a viagem de volta a uma rusticidade provocadora, o que faltava para completar o passeio. Montes de entulhos com tijolos e telhas pincelados com versos do livro. Centenas de bandeiras de pano que reproduzem páginas revisadas à mão (no original, pelo próprio autor) forrando o teto, que podem ser puxadas por cordinhas de pano (outra atração para as crianças). Quadros de madeira com versos “bordados” em lã vermelha, em que as palavras parecem verter sangue. Uma chuva de saquinhos de areia. Um mapa gigante apontando cidades do sertão em contraste com grandes metrópoles mundiais. Tudo isso encoberto por uma neblina, numa alusão à figura de Diadorim. Tudo para valorizar a linguagem de Rosa e forçar o visitante a experimentar uma nova leitura. Sem preconceito. Uma experiência que leve a um suspiro profundo e a uma frase à la Riobaldo: “Eu quase nada sei. Mas desconfio de muita coisa”.