Pintura de mestre

Gazeta Mercantil - Quinta-feira, 1 de novembro de 2007

qui, 01/11/2007 - 15h35 | Do Portal do Governo

Gazeta Mercantil

A obra de formação de Thomaz Ianelli (1932-2001) se insere naquele período da arte brasileira – final de 50, início dos 60 – ainda pouco esquadrinhada com lupa e rigor pelos historiadores de arte. É um curioso período de maturação da têmpera trazida pelos imigrantes – em especial, os italianos -, para não se dizer de fato de uma época de afirmação de acento e de personalidade. Neste período, aflora, de maneira mais explícita, uma estética aclimatada à temperatura brasileira após anos de acomodação.

Essa trupe de imigrantes e seus filhos por longo período experimentou uma contradição entre suas origens européias, com tonalidades diferenciadas por suas regiões de nascimento, e a cor sugerida pela exuberância brasileira. Em nenhum momento tal constatação se apóia ou alude a raciocínio regionalista – é tão somente um amparo a uma evolução sociológica cravada na obra de um grupo de artistas. Não há como desvincular do ambiente de produção, com suas enormes conseqüências, o trabalho desenvolvido por Volpi, Rebolo, e Ianelli e Fayga, por exemplo, membros de uma segunda geração.

Ambas as gerações oferecem à pintura brasileira uma sofisticação e uma visão sem folclore, portanto mais informada, do que viria a ser um desenvolvimento artístico. É um diálogo cúmplice, não um monólogo assertivo, quando ocorre verdadeira troca de acervos, inclusive com reflexos na maturidade das obras: a cor é vista como elemento fundamental à narrativa, sem ser mais um mero instrumento de suporte; deixa de ser ainda componente de abuso folclórico – a tonalidade caminha pelo pastel, pelas regiões menos loquazes da paleta; há mesmo uma aclimatação entre as duas correntes, a local e a estrangeira. A local, vale dizer, muito definida por nossa herança africana; os portugueses, nessa receita toda, contribuem basicamente com o embevecimento criminoso e claudicante.

Tais percepções podem ser observadas na própria trajetória pictórica dos artistas. Vejamos Volpi, um dos precursores da nossa modernidade. Ao iniciar sua obra, ela se apresenta figurativa. Ainda funciona quase como uma descrição: casebres, pequenas ruas, a vida cotidiana da periferia, com seu movimento de comércio modesto, as festas. Volpi está mais preocupado com a forma, com a composição; a cor também não produz nenhuma atenção. Ao caminhar para o enxugamento de seu desenho, o que deixará os vindouros concretistas com água na boca, sendo a salvação da lavoura deles, o artista passa a usar as tonalidades para marcar a narrativa. Adquire uma prototipia marcante. Mesmo padrão é seguido por Tomie Ohtake: enquanto adquire segurança, sua pintura é figurativa e se atém a reproduzir o imediato, o vizinho (ruas, casas, jardins etc); ao obter maturidade, explode as formas, caminha pelo abstrato, enquanto a cor trafega em densa narrativa.

O caso de Thomaz Ianelli, embora de uma geração mais jovem, mas pertencente àquele grupo de imigrantes ou de seus filhos, de origem humilde, que habita a periferia paulistana, e que desenvolve atividades gráficas para sobreviver, também não seguirá um roteiro muito diferente: inicia-se no figurativo, com a paleta de cores reduzida, ainda européia, e depois procura ir explodindo a realidade, o visível, dando às figuras um tom farsesco, circense, quase clown. O salto entre os estilos é impulsionado visivelmente por inspiração de Paul Klee, a partir dosanos 50. É porém apenas uma plataforma de alteração, porque Ianelli logo irá imprimir nuances diferenciadas, como esse mood emprestado ao universo popular da periferia paulistana – festas, brincadeiras, procissões, esse onírico e despretensioso mundo ocupado pela infância.

Em sua maturidade, a obra de Thomaz Ianelli somente irá radicalizar tais enunciados: a partir da cor determinará sua temperatura de narrativa, ora lúdica ora dramática (em especial parte de sua pintura); volumes serão construídos para moldar os espaços onde a cor dá o ritmo sem o uso da pincelada: ele é um artista que procura dissolver seus gestos, para transformá-los em elementos velados; por fim, a empatia que o artista busca com o traço ingênuo, quando quase o desculturaliza, tirando desse ato o seu registro de marcação do tempo: é como se fosse um mergulho num tempo imemorial, perdido além fronteira e além cultura.

A pequena retrospectiva, na Pinacoteca do Estado, a primeira após sua morte, em 2001, flagra o artista em alguns de seus principais papéis, ora como pintor, ora exímio desenhista ou mesmo com suas encantadoras assemblages. O percurso revela um artista diante da pesquisa de cores, que a tudo submete e tudo sinaliza – mesmo as formas. Nisto, Ianelli se alinhava aos fiorentinos renascentistas, para quem a cor era mais importante do que o desenho. Seja como um delicado colorista – tarja que o perseguiu nos últimos anos de vida, à semelhança de um logo reducionista -, ou como construtor de intrigantes paletas, sua obra o colocou em destaque na produção pictórica: poucos se dedicaram com tanta seriedade à pesquisa cromática e suas ofertas de universos. Sem dúvida um dos maiores artistas brasileiros da segunda metade do século XX. A presente mostra é o início de uma correção que Ianelli não experimentou em vida.

(Gazeta Mercantil/Fim de Semana – Pág. 7)(Miguel de Almeida)