Pinacoteca trilha caminhos de Henry Moore

Folha de S. Paulo - Quarta-feira, 6 de março de 2005

qua, 06/04/2005 - 8h48 | Do Portal do Governo

Com 239 obras, exposição do artista ocupa todo o primeiro andar do local e dialoga com o parque da Luz

FABIO CYPRIANO
Da Reportagem Local

‘Só sobre meu cadáver um Henry Moore entra na Tate’, chegou a afirmar J.B. Manson, diretor da instituição inglesa, no final da década de 30. A bravata não era um ato isolado, ela representava o conservadorismo britânico no início do século 20, quando as escolas de arte nem sequer ensinavam escultura, e estátua era o único termo aceito pelas instituições.

Henry Moore (1898-1986) mudou o panorama da arte inglesa. Em sua abrangente produção -foram mais de 12 mil esculturas e 7.000 desenhos-, ele elevou a escultura a importante suporte de manifestação artística, influenciando toda uma geração contemporânea, que faz com que a escultura britânica, com nomes como Antony Gormley e Tony Cragg, esteja entre as mais importantes da cena atual.

A partir da próxima terça, Moore ganha sua maior exposição no Brasil, inaugurando o calendário de festividades dos cem anos da Pinacoteca. Em 239 obras, a maioria esculturas, o artista volta ao Brasil em um percurso que apresenta todas as suas fases, a partir do acervo da Fundação Henry Moore.

O inglês participou da 1ª Bienal de SP, em 1951, com duas gravuras, e da 2ª Bienal, com 29 esculturas, além de ter ganhado retrospectiva no MAM-RJ, em 1965, com mais 27 esculturas. Nada se compara ao que se verá agora.

‘Visitamos 22 museus no país para escolher o local adequado à sua obra. A Pinacoteca se revelou o mais correto’, conta David Mitchinson, um dos curadores da mostra e diretor da fundação. Mitchinson é reconhecido como um dos maiores especialistas na obra do artista, tendo o conhecido em 1968 e se integrado à fundação, criada pelo artista em 1977, para a qual Moore doou 600 peças. Depois da Pinacoteca, a mostra, que tem apoio do British Council, segue para o Paço Imperial, no Rio, e para o Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília.

Na Pinacoteca, pela primeira vez, todo o primeiro andar do local será dedicado a um só artista, das salas climatizadas ao octógono. Portas até então fechadas serão abertas, criando um diálogo com o parque da Luz, satisfazendo um anseio de Moore em relação às suas obras: ‘Prefiro ver as minhas esculturas em qualquer paisagem a vê-las dentro do mais belo edifício do mundo’. Em frente ao prédio, está uma de suas maiores esculturas na mostra, ‘Oval com Pontas’, realizada entre 1968 e 1970.

Bronze, mármore, alabastro, rochas de diferentes regiões, todo tipo de material era válido para as esculturas de Moore. ‘Ele era um pesquisador de materiais. Colecionava até rochas de praia’, diz Mitchinson. Acima de tudo, Moore era um apreciador da natureza. Suas esculturas não só eram criadas com materiais orgânicos, como suas próprias formas estavam inspiradas, na maioria dos casos, em elementos da
natureza, como ossos de animais, conchas do mar e, é claro, a figura humana, especialmente mulheres.

A exposição segue uma ordem cronológica, tendo início nas salas climatizadas. Lá estão desde cópias em gesso que Moore precisava fazer no Royal College, na década de 20, às suas apropriações de objetos pré-colombianos, que o artista, já em situação privilegiada, passaria a colecionar nos anos 60. A partir daí, será possível ver as fases atravessadas por Moore, cujas obras mais relevantes estão comentadas por Mitchinson no quadro que emoldura este texto.

No percurso, apesar das influências visíveis de vários movimentos da arte, como o cubismo, o surrealismo e até o expressionismo, há um denominador comum: ‘Tudo que se vê aqui é facilmente identificável como um Henry Moore. Ele era um artista vinculado ao seu tempo, mas sempre manteve sua identidade’, conta Mitchinson. No final da mostra, há fotos do artista em vários períodos e um documentário preparado para o Brasil, mas a melhor forma de entender seu trabalho é usar da estratégia do próprio artista: ‘De tanto penetrar no coração da matéria acabei descobrindo o céu do outro lado’.

Henry Moore – Uma Retrospectiva/Brasil 2005
Curadoria: Anita Feldman Bennet e David Mitchinson
Quando: abertura no dia 11 (para convidados); de ter. a dom., das 10h às 17h; até 12/6
Onde: Pinacoteca do Estado (praça da Luz, 2, tel. 0/xx/11/ 3229-9844)
Quanto: R$ 4 (grátis aos sábados)
Patrocínio: Bradesco

Sociedade civil assumirá administração do museu

Em meio à programação de comemoração dos cem anos da Pinacoteca, fundada em 25 de dezembro de 1905, a instituição será submetida a uma reformulação administrativa, passando a ser gerenciada pela sociedade civil, a partir de junho próximo. Segundo Marcelo Araujo, diretor da Pinacoteca, essa fórmula apenas oficializa uma prática já existente na gênese da instituição: ‘Nosso sucesso vem da parceria entre Estado e iniciativa privada’.

A programação começa com Henry Moore, mas tem mais de 50 eventos marcados, alguns até fora da Pinacoteca, como uma mostra no prédio da Fiesp, na avenida Paulista, a partir de agosto, sobre o histórico da instituição, além de uma exposição itinerante, com reproduções do acervo, que irá circular por 25 cidades do interior. Até mesmo a Banda Sinfônica do Estado tomará parte do calendário: há sete músicos, entre eles Arrigo Barnabé e Roberto Sion, que preparam composições a partir do acervo para serem apresentadas em junho.

Araujo conversou com a Folha sobre o sucesso do museu mais visitado da cidade e os desafios de sua nova fase administrativa. Leia a seguir os principais trechos.

Folha – Por que começar as comemorações dos cem anos da Pinacoteca com Henry Moore?
Marcelo Araujo – Henry Moore é um dos mais emblemáticos artistas do século 20. Em seu trabalho se observam algumas das questões mais importantes debatidas nesse período, como a passagem do figurativo para o abstrato, a incorporação de culturas distantes, as marcas da guerra e questões construtivas.

Folha – A exposição de Rodin trouxe grande público ao museu. Qual a expectativa com Moore?
Araujo – O Moore é a continuidade à tradição que se criou aqui em apresentar influentes escultores, como Rodin ou Camille Claudel, mas ambos foram importantes no século 19. Com Moore, entramos agora no século 20.

Folha – A Pinacoteca é, hoje, o museu com maior prestígio na cidade, mesmo sendo do Estado, que em outras áreas não consegue tanta eficácia. A que você credita esse sucesso?
Araujo – Ela tem uma situação privilegiada. Primeiro pelas instalações físicas, são dois prédios qualificados. É o único museu que pode mostrar arte brasileira do século 19 ao século 20 de forma adequada. Depois pela diversidade do que se expõe aqui, sejam obras contemporâneas ou tapeçaria francesa, o que traz um público amplo. É na articulação dessas questões -o edifício, o acervo, a diversidade e também o setor educativo, outro ponto alto- que ela alcança tanta visibilidade.

Folha – Apesar de ser um museu estatal, a programação sempre teve apoio da iniciativa privada, e a Pinacoteca está num período de transição para ser administrada por uma organização social. Como está esse processo?
Araujo – Em junho próximo, a Pinacoteca já será administrada por uma OS [organização social]. Estamos na fase de qualificação da Associação de Amigos, que irá desenvolver o papel gerencial, numa parceria que, de fato, já vem ocorrendo aqui há cem anos. Não podemos nos esquecer que a Pinacoteca surgiu no Liceu de Artes e Ofícios, instituição privada.

Folha – Mas não há aí um risco de ela perder as condições que lhe concedem esse papel privilegiado?
Araujo – A comemoração dos cem anos é uma forma de afirmar o caráter público da instituição. Além do mais, na forma como estamos implementando a OS aqui, tanto o diretor como o Conselho de Orientação continuarão a ser indicados pelo governo estadual.

Folha – Isso é uma novidade…
Araujo – Sim, estamos lutando para que isso ocorra, especialmente pela natureza da Pinacoteca: a gestão será cedida a uma OS, mas o acervo continua estatal, e as novas aquisições irão para o Estado. O importante é que nesse novo sistema haverá maior participação da sociedade civil sem que o Estado abra mão de sua função.