Pinacoteca descobre tesouros cristãos da Armênia

O Estado de S. Paulo - Sexta-feira, 7 de maio de 2004

sex, 07/05/2004 - 8h48 | Do Portal do Governo

MARIA HIRSZMAN

Tesouros de Etchmiadzin, exposição que a Pinacoteca do Estado inaugura hoje com a presença ilustre do patriarca supremo da Igreja Apostólica Armênia, é mais do que a reunião de belíssimos objetos produzidos ao longo de 17 séculos neste país da Ásia Menor. Trata-se de uma oportunidade rara de entrar em contato com a história de uma civilização que pouco conhecemos, mas com a qual temos vários pontos de ligação.

Além da importante presença da colônia armênia no País (o que explica a visita pastoral que o Catholicós S.S. Karenin II, o recém-eleito líder dessa igreja, faz à cidade), que se espalhou pelo mundo fugindo do genocídio perpetrado pelos turcos no início do século passado, a Armênia é uma espécie de berço da cristandade, tendo sido o primeiro país do mundo a tornar-se oficialmente cristão, ainda no século 3 depois de Cristo.

As 74 peças litúrgicas trazidas para o Brasil pertencem ao complexo-sede da Igreja Apostólica deste país, situada na cidade sagrada de Etchmiadzin e independente tanto catolicismo romano como da ortodoxia cristã. E são testemunho da devoção e da maestria dos artesãos anônimos responsáveis pela realização desses objetos (adornos de altar, vestimentas, cruzes, iluminuras, tapeçarias, cetros, etc.). Como afirma o curador Shahen Khachatrian no texto do catálogo, ‘é como se a mão de um único mestre tivesse tocado essas criações artísticas, de natureza tão variada, difundidas em diferentes locais e criadas por diversas escolas.’

Do ponto de vista simbólico e devocional, uma das peças que chama mais atenção é uma réplica, feita no século 17, da ponta da lança que feriu Jesus na cruz e que teria sido levada para a Armênia por São Judas Tadeu. O original é mantido fechado, sendo usado somente de 15 em 15 anos para misturar óleos bentos, usados nas cerimônias religiosas. A cruz recortada na lança foi feita posteriormente, na Idade Média. Também há exemplos de relicários, um deles inclusive com um pedaço de osso aparente, mas que não é considerado relíquia porque se perderam as informações sobre a que santo teria pertencido e por isso pôde viajar. As relíquias identificadas não podem deixar seu lugar de origem.

Outro aspecto interessante é a utilização de textos sagrados em quase todas as peças, como testemunho da importância da escrita na tradição dessa cultura. Já em 406 d.C, foi inventado o alfabeto armênio, composto por 36 letras – extremamente gráficas o que torna sua utilização nos objetos mais um elemento de sofisticação visual. Em seguida, foram feitas as traduções da Bíblia Sagrada, originalmente em grego e assírio. Existem no país 10 mil manuscritos datados dos primeiros séculos da era cristã – infelizmente, volume equivalente de manuscritos raros foram destruídas num único dia do século 12, quando da invasão de Seljuk. ‘Várias obras importantes da Grécia antiga nos chegaram via Armênia’, lembra o diretor da Pinacoteca, Marcelo Araújo, lembrando que o alfabeto e a cultura religiosa – bem representados na mostra – são a grande marca cultural dessa civilização. Ambos os aspectos estão representados em manuscritos trazidos ao Brasil, com belíssimas iluminuras e ricas capas em ouro e prata, com pedras incrustadas, em técnica similar à usada nas cruzes e relicários.

Chama atenção tanto a riqueza e a sofisticação dos trabalhos, como o forte cruzamento de referências culturais. Pela própria localização do país, elo de comunicação entre o Oriente e o Ocidente – o que explica seu trágico passado, marcado por conflitos sangrentos que levaram à grande dispersão de seus descendentes pelo mundo -, identifica-se aqui e ali uma grande influência das culturas persa, árabe, grega e russa (até 1991 a Armênia fazia parte da ex-URSS). ‘Não existe uma questão estética única’, afirma Araújo. Dentre as várias tradições de artesania, ele chama atenção para a maestria no trabalho em metal, tradição longínqua que permanece viva nos dias de hoje.

Mas também há exemplos de trabalhos importantes em outros campos, como no trabalho em tecido. Ele mostra por exemplo uma cortina de altar estampada com motivos do evangelho sobre algodão azul, cuja técnica de origem é o batique da Índia – onde também há uma importante colônia armênia.

Exposição semelhante a essa já foi exibida em Viena, Moscou, Helsinque e Berlim em 2001, quanto foram celebrados os 1700 anos do Cristianismo. E a colônia armênia teve a idéia de remontá-la para celebrar a vinda do novo Catholicós à América Latina. Infelizmente a mostra, patrocinada pelo Banco Sofisa, não seguirá com Karekin II para o Uruguai e a Argentina, retornando para Etchmiadzin, cidade sagrada cujo local de fundação teria sido indicado pelo próprio Cristo, em visão tida pelo fundador da igreja.