Pesquisa revela obra verdadeira

O Estado de S.Paulo - Domingo, 6 de abril de 2008

dom, 06/04/2008 - 13h24 | Do Portal do Governo

O Estado de S.Paulo 

O público paulistano terá a inédita chance, nos concertos desta quinta, sexta e sábado da Osesp na Sala São Paulo (3367-9500), de conhecer a verdadeira Sinfonia em Sol Menor do compositor cearense Alberto Nepomuceno (1864-1920). A afirmação pode soar exagerada, mas talvez seja este mesmo o caso, já que a execução se baseia em extensa revisão crítica sobre o manuscrito feita a quatro mãos por Maria Elisa Pasqualini, do Departamento de Documentação Musical da Osesp, e pelo compositor Rodolfo Coelho de Souza, da USP. O trabalho levou em conta as duas edições da sinfonia, publicada nos anos 30 pela Escola Nacional de Música e recentemente pela Academia Brasileira de Música: a primeira tinha muitos problemas, como discrepâncias importantes entre as partes instrumentais e a partitura, assim como incoerências internas na própria obra; a segunda, da ABM, ‘foi decepcionante’, segundo Coelho de Souza. ‘Ela tomava como base a edição anterior cheia de erros e ainda acrescentava outros tantos.’

O exame do manuscrito e das edições revela erros significativos e evidencia diversos aspectos insuspeitados e fascinantes da sinfonia. ‘Por exemplo, constatou-se que a edição anterior havia alterado dinâmicas e fraseados em passagens fundamentais da obra, assimilando o gosto das interpretações da época, que buscavam ‘nacionalizar’ a obra, exagerando aspectos rítmicos para que ela se tornasse mais parecida com uma valsa brasileira, à maneira de Mignone ou Nazareth.’

Como se vê, detalhes como esses podem alterar o sentido de uma obra musical e revertê-la em favor desta ou daquela ideologia. ‘O tratamento original do compositor’, alerta Coelho de Souza, ‘é muito mais sóbrio.’ ‘Revela uma influência direta da Terceira Sinfonia de Brahms, escrita apenas dez anos antes da de Nepomuceno. A sinfonia do brasileiro, portanto, tem um caráter muito mais próximo da escola formalista romântica do que dos nacionalistas modernistas, que viram nela só o que lhes interessava ver.’

E o que isso quer dizer? Simples. Que esta obra, cooptada pelos nacionalistas, é bem anterior ao movimento da música nacionalista brasileira. Ela certamente influenciou as sinfonias escritas por Villa-Lobos, Guarnieri e outros nacionalistas do século 20, mas o tipo de nacionalismo que ela professa é de natureza diferente, segundo Coelho de Souza: ‘É o mesmo tipo de nacionalismo que encontramos na música de Grieg em relação à Noruega ou Dvorak em relação à cultura da Boêmia da atual República Checa, ou Tchaikóvski em relação à Rússia.’

Poucos notam o detalhe, mas, relembra o revisor da sinfonia de Nepomuceno, entre 1892 e 1895 três compositores criavam simultaneamente novas obras orquestrais: Nepomuceno, então morando em Berlim; Antonin Dvorak, então trabalhando nos EUA, mostrava aos norte-americanos como compor música nacional por meio de sua Sinfonia n° 9 – apelidada de Sinfonia do Novo Mundo; e Tchaikóvski escrevia sua sexta sinfonia, a Patética, na Rússia.

‘Portanto’, diz Coelho de Souza, ‘se há uma sinfonia que deveria merecer o epíteto de ‘Sinfonia do Novo Mundo’ é a de Nepomuceno, que de fato nasceu nas Américas, e não Dvorak, que só esteve de passagem por Nova York durante poucos anos para trabalhar como professor e regente. Trata-se da principal sinfonia da música brasileira do período romântico. Pode-se ir mais além e dizer que é a mais importante sinfonia do século 19 em todas as Américas: não há na música argentina, norte-americana, mexicana e mesmo em alguns países europeus, nenhuma sinfonia do porte desta obra.’

Faz sentido. Dvorak foi levado aos EUA em 1892 a peso de muitos dólares bancados por uma milionária, para ‘ensinar’ os compositores norte-americanos a criar uma música nacional. E, em uma frase famosa, puxou-lhes as orelhas dizendo mais ou menos o seguinte: olhem para as músicas negras e indígenas que estão à sua volta, e tratem de fazer música nacional como eu fiz na Boêmia e tantos outros fizeram na Europa.

A célebre Sinfonia nº 9, em que Dvorak utiliza temas negros e indígenas, foi logo apelidada de Sinfonia do Novo Mundo. Mas, segundo o crítico James Huneker na estréia, ‘a sinfonia de Dvorak é americana: será? Temas de melodias negras; composta por um boêmio; regida por um húngaro e tocada por alemães em uma sala de concertos construída por um escocês. Um terço da platéia era de americanos. Nos restantes dois terços havia de tudo, menos americanos.’

Ora, ao menos neste quesito não precisamos pedir nada – ou quase tudo – emprestado a ninguém. Um brasileiro mesmo, Alberto Nepomuceno, compôs o que Coelho de Souza chama de a ‘verdadeira’, ou melhor, a primeira Sinfonia do Novo Mundo, naqueles mesmos anos 90 do século 19. O maestro John Neschling é o responsável pelo projeto de revisão musicológica em parceria com a USP, iniciado em maio do ano passado, que visa à gravação das obras sinfônicas de Nepomuceno, ainda sem registro moderno aceitável. Do CD, a ser gravado este ano, deverão constar a Suíte Antiga, o prelúdio de O Garatuja e a Sinfonia em Sol Menor, entre outras.