Pérolas melódicas na Virada Cultural

O Estado de S.Paulo - Sexta-feira, 25 de abril de 2008

sex, 25/04/2008 - 13h02 | Do Portal do Governo

O Estado de S.Paulo

Há 35 anos, descendo o Morro de São Carlos, no bairro carioca do Estácio, Luiz Melodia lançava seu primeiro álbum, Pérola Negra, provocando espanto pela originalidade das misturas rítmicas, pelos versos poéticos com requintes de nonsense – e com a elegância natural que transparece até hoje na voz sedosa. Naquele ambiente pós-tropicalista, público e crítica ainda mantinham as referências estereotipadas do negro sambista. Melodia, que recria seu disco de estréia na íntegra amanhã na Virada Cultural, chegou para contrariar. Mas esse, digamos, ”distanciamento” do samba, não foi determinante para ele se estabelecer. Diversidade, segundo ele, é a característica que melhor identifica seu trabalho, desde o início até hoje.

”Meu pai era compositor, que fazia marchinhas e até boleros, não só samba. E isso juntava com meu gosto musical. Eu ouvia muito rádio – música nordestina, jovem guarda, boleros – e também ia para a escola de samba. Então toda essa variedade de sons veio a me influenciar”, diz o cantor e compositor, que no final dos anos 60 integrou uma banda de iê-iê-iê. Essa diversidade é nítida em Pérola Negra, que começa com o choro Estácio, Eu e Você, em que ele é acompanhado pelo Regional de Canhoto (a flauta é de Altamiro Carrilho), e já na segunda faixa, Vale Quanto Pesa, funde pop, marcha e mambo. Tem rock adiante (Pra Aquietar), balada (Magrelinha), blues (Abundamentemente Morte), samba-canção (Estácio, Holly Estácio), rhythm and blues (Objeto H) e termina com o Forró de Janeiro.

Revisando o disco hoje, Melodia diz que ele tem ”uma quantidade de situações” – canções que viraram clássicos nas vozes de Gal Costa e Maria Bethânia, o fato de ser o primeiro, e por figurar sempre nas listas dos melhores dos anos 70 – que o fazem considerá-lo ”da maior importância”. ”Fico feliz pelos elogios ao disco, que tem arranjos maravilhosos de Perinho Albuquerque, mas aquilo foi de uma época. É um disco que está do lado esquerdo do meu peito, mas acho que não dá para considerá-lo o mais importante. Depois fiz discos como Maravilhas Contemporâneas (1976) e Mico de Circo (1978), de que gosto muito, têm uma sofisticação maior.”

Na falta de parâmetros para classificá-lo, Melodia logo foi assentado no nicho dos ”malditos”, ao lado de Sérgio Sampaio, Jards Macalé, Jorge Mautner, porque não fazia música dita comercial. E olhe que ele foi revelado por duas divas em absoluta ascensão na época: Gal e Bethânia. Amigo de Waly Salomão, que dirigiu o histórico show Fa-Tal, Gal a Todo Vapor, foi ele quem levou a canção Pérola Negra para a cantora incluir no roteiro. A gravação saiu no LP lançado em 1971. No ano seguinte, foi a vez de Bethânia incluir Estácio, Holly Estácio no álbum Drama, um dos marcos daquele período (leia ao lado). Gal voltaria a gravá-lo (Presente Cotidiano) no disco Índia (1973). Foi o aval que Melodia precisava para a gravadora (Philips, hoje Universal) investir no jovem de 22 anos e produzir seu primeiro LP em 1973.

Com exceção de Pra Aquietar (dedicada à Ilha de Paquetá), as demais canções do álbum (todas dele) foram inspiradas pela namorada, de apelido Deda. Por sugestão de Salomão, Pérola Negra também acabou se tornando uma homenagem a um certo Aluísio, homossexual que usava esse codinome. Diversas letras, entre elas Farrapo Humano (”Viro um farrapo, tento o suicídio/ Com caco de telha/ Ou caco de vidro”) e Abundantemente Morte (”Um morto mais vivo/ De vida privada”), foram censuradas, algumas depois liberadas.

No show de amanhã, às 18 horas no Teatro Municipal, além das dez faixas do disco, Melodia vai interpretar três canções dos mais recentes, como o ótimo Estação Melodia (Contrastes, de Ismael Silva, e Dama Ideal, de Alcebíades Nogueira e Arnaldo Passos) e Luiz Melodia Convida (Cuidando de Você, parceria dele com o fiel Renato Piau). Tocando guitarra, Piau está no quarteto que acompanha Melodia amanhã, ao lado de Renato Fonseca (piano), André Vasconcelos (baixo) e Alan (bateria).

”Os arranjos que Perinho Albuquerque fez para o disco são excelentes, mas não tenho como reproduzir aquele som no palco, hoje”, diz Melodia. ”Precisaria de uma banda grande, com sopros e todo um aparato, não tenho como bancar isso. Vou fazer o possível para chegar o mais próximo.” O show faz parte do projeto de ”discos antológicos” que a Virada Cultural experimentou no ano passado e repete neste.

Arquivo sonoro

Quando Luiz Melodia despontou, no início dos anos 1970, a música pop brasileira pós-tropicalista se expandiu com soluções criativas. Foi um período de grandes revelações – além dele, Sérgio Sampaio, Jorge Mautner, Jards Macalé, Alceu Valença, Raul Seixas, Ivan Lins, Gonzaguinha, Secos & Molhados, João Bosco e Aldir Blanc. Ao mesmo tempo, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque voltavam do exílio, lançando discos históricos, Tim Maia, Novos Baianos, Rita Lee, Paulinho da Viola e Taiguara deslanchavam. Elis Regina revelava Belchior, Fagner, Zé Rodrix, Sueli Costa, Bosco e Blanc e Águas de Março, de Tom Jobim. Abaixo, 15 discos lançados em 1972 (*) e 1973 (**) que marcaram época.

ACABOU CHORARE, Novos Baianos *

CALABAR, Chico Buarque *

DANÇA DA SOLIDÃO, Paulinho da Viola *

DRAMA, Maria Bethânia *

ELIS, Elis Regina *

EXPRESSO 2222, Gilberto Gil*

HOJE É O PRIMEIRO DIA DO RESTO DA SUA VIDA, Rita Lee & Mutantes *

ÍNDIA, Gal Costa **

JARDS MACALÉ, Jards Macalé *

KRIG-HA BANDOLO, Raul Seixas **

MATITA PERÊ, Tom

Jobim **

PÉROLA NEGRA, Luiz Melodia **

SECOS & MOLHADOS, Secos & Molhados **

TRANSA, Caetano Veloso*

VIAGEM, Marisa**

Outros discos antológicos nos palcos da Virada DANÇA DAS CABEÇAS (1977): Clássico que contribuiu para projetar os nomes de Egberto Gismonti (violão e piano) e Naná Vasconcelos (percussão) no exterior. Eles se reúnem no palco do Teatro Municipal amanhã às 21 h para voltar a temas como Tango e Fé Cega, Faca Amolada.

PASSADO, PRESENTE & FUTURO (1972): Primeiro dos dois álbuns gravados por Sá, Rodrix & Guarabyra, marca a fusão de rock e música interiorana mineira, com canções entre humoradas e melancólicas e letras libertárias. O trio de rock rural se reencontra amanhã à meia-noite no Teatro Municipal.

O FINO DA BOSSA (1964): O Zimbo Trio tocou apenas em uma faixa (Garota de Ipanema) desse disco, registro de um show no Teatro Paramount, que tinha Nara Leão, Jorge Ben e Alaíde Costa, entre outros. O Zimbo recria tudo agora com Fabiana Cozza e Jair Rodrigues, domingo às 18 h no Municipal.

MARIA ALCINA (1974): Dona de vozeirão e senso de humor peculiares, essa reinvenção de Carmen Miranda já foi confundida com transformista no início. Seu segundo álbum tem pérolas como Tome Polca e Piano Alemão. O horário para se divertir com ela é às 3 h de domingo no Bailão do Arouche.

NÓS VAMOS INVADIR SUA PRAIA (1985): Escrachado álbum de estréia do grupo de rock paulistano Ultraje a Rigor, transformou-se numa sucessão de hits, incluindo Ciúme, Inútil, Eu Me Amo, Mim Quer Tocar e outras. Vai ser reproduzido domingo, às 18 h, na Praça da República.

O IMPORTANTE É QUE A NOSSA EMOÇÃO SOBREVIVA (1974): O título saiu dos versos da canção Mordaça, símbolo de resistência contra a censura, na voz dos compositores Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro e da cantora Márcia. O trio volta à carga ao meio-dia de domingo no Teatro Municipal.