Passados que se rebelam contra apatia do presente O Filho

O Estado de S.Paulo - Quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

qua, 03/12/2008 - 11h47 | Do Portal do Governo

O Estado de S.Paulo

Eterno, de Cristovão Tezza, e A Chave de Casa, de Tatiana Salem Levy, são os vencedores da primeira edição do Prêmio São Paulo de Literatura

O que une Tatiana Salem Levy, de 29 anos, ao escritor Cristovão Tezza, de 56, é a vontade de sacudir os leitores com a ficção. Ambos atacam uma apatia geral, mostrando personagens de algum modo paralisados. A narradora de A Chave de Casa, de Tatiana, é uma mulher numa cadeira de rodas, que usa a imaginação para visitar o passado. O narrador de O Filho Eterno fala de um homem que leva um paralisante soco no estômago, ao saber que o filho é portador da síndrome de Down. Mais uma vez, a literatura exorciza fantasmas.

Anunciados na noite de segunda, Tatiana e Tezza são os ganhadores do Prêmio São Paulo de Literatura 2008 (leia mais ao lado) na categoria Autor Estreante e Melhor Livro do Ano, respectivamente. Com o valor do prêmio, R$ 200 mil para cada autor, Tezza anunciou o fim de sua carreira acadêmica – há 22 anos é professor universitário – para entregar-se, a partir do segundo semestre do ano que vem, exclusivamente à literatura.

Tezza viu sua vida virar de cabeça para baixo neste ano. Literatura precisa de ócio, tudo o que ele não teve após lançar O Filho Eterno. Antes do Prêmio São Paulo de Literatura, seu romance já tinha faturado outros quatro: o da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA); melhor romance do Prêmio Jabuti; Prêmio Bravo!; e o Portugal Telecom, que dá R$ 100 mil ao primeiro colocado. Antes de saber que receberia mais um prêmio, Tezza comparava-se a um personagem de apólogo do Machado de Assis. “Tem algum sentido que preciso decifrar”, afirmava. Depois de premiado, tentava explicar-se com a velha história: quando tudo vai tão bem, deve haver algo à espreita.

“A tendência de uma literatura confessional existe, mas acho que não é a única”, diz Tezza, pai de Felipe, nascido em 1980 também com síndrome de Down. Embora se diga personagem de O Filho Eterno, Tezza só conseguiu escreveu o romance após adotar o narrador em terceira pessoa. O estalo foi dado por três livros – Uma Questão Pessoal, do japonês Kenzaburo Oe, Nascer Duas Vezes, do italiano Giuseppe Pontiggia, e Juventude, do sul-africano J.M. Coetzee.

Para o escritor catarinense, radicado em Curitiba, o impacto de O Filho Eterno (Record, 224 págs., R$ 34) na crítica deve-se a três motivos – a intensidade emocional, o retrospecto de geração e a crueldade do relato. Ao falar da relação com o filho, Tezza falou dele mesmo – um aspirante a escritor no começo dos anos 80, vendo a agonia da ditadura militar. Rebelando-se contra a vida burguesa, Tezza viu no menino uma esperança de renascimento. O que encontrou foi um garoto de traços mongóis – àquela época, portadores de síndrome de Down eram chamados de mongolóides – e sentiu imensa vergonha de si mesmo.

Cristovão Tezza, aquele jovem de 28 anos que queria mudar o mundo, confundindo projetos literários com existenciais, precisou amadurecer à força. O confronto com o passado foi inevitável. Para fazê-lo, uma narrativa tão cruel quanto essa visita. A literatura pode não oferecer um sentido pleno para a vida, mas pode torná-la bem melhor, quando aceitas as imperfeições.

Essa é uma das crenças de Tatiana, que não tem pretensão de chegar a uma verdade quando escreve. Ela sabe que a ficção é uma grande mentira, mas é uma mentira que instaura novos mundos. Escrito “mais com intuição do que com racionalidade”, A Chave de Casa (Record, 208 págs., R$ 32) “fala do Brasil, pois fala de imigração”. Baseia-se numa tradição: a do povo judeu que carregava uma chave para o exílio, como símbolo da possibilidade do regresso. “Minha família não é ortodoxa, por isso a herança judaica aparece fragmentada na ficção, me interessa o vestígio”, ela diz.

Descendente de turcos e moradora no Rio, Tatiana nasceu em Portugal, em 1979, mas, aos 9 meses, estava de volta ao País – seus pais brasileiros eram exilados e foram beneficiados pela Anistia. A Chave de Casa explora esses traços ancestrais, ao contar a história de um avô, saído da Turquia, que pede à neta que procure uma casa em Esmirna. Essa viagem, nunca se sabe se é real ou sonhada, é o diálogo com o passado. Não por acaso, a narradora do romance diz que nunca fala sozinha, fala “sempre na companhia desse sopro que me segue desde o primeiro dia”.

CAJU E CASTANHA, CAZÉ E OS R$ 200 MIL FORAM DESTAQUE HUMOR: A primeira edição do Prêmio São Paulo de Literatura, criado pela Secretaria de Estado da Cultura este ano, teve a marca do humor. Cazé foi o apresentador que, a todo instante, fazia piadas para enfatizar o valor da premiação – R$ 200 mil para cada autor. É o mais alto do País. Antes do anúncio dos premiados, os repentistas Caju e Castanha improvisaram, com pandeiros, um show de 15 minutos ininterruptos sobre literatura. O prêmio recebeu a inscrição de 146 romances. Indicado por uma curadoria de 5 pessoas e um júri inicial de 10, o júri final – Bernardo Ajzenberg, Fabio de Souza Andrade, Marisa Lajolo, José Castello e Samuel Seibel – indicou 10 finalistas. Na categoria autor estreante concorreram Cecilia Gianetti, Eduardo Baszczyn, Tatiana Salem Levy, Tiago Novaes e Wesley Peres e, na categoria melhor livro, Beatriz Bracher, Bernardo Carvalho, Cristovão Tezza, Menalton Braff e Wilson Bueno.