Paixão por Clarice Lispector

O Estado de S.Paulo - Segunda-feira, 23 de abril de 2007

seg, 23/04/2007 - 13h17 | Do Portal do Governo

O Estado de S.Paulo

À distância, o que se destaca é o rosto de Clarice Lispector, enorme, lindo, enigmático. Ao se aproximar, o visitante vai descobrir que a imagem está impressa em filó preto, que revela, olhando bem de perto, frases da escritora. Eis o abre-alas da exposição Clarice Lispector – A Hora da Estrela, que abre hoje para convidados, no Museu da Língua Portuguesa – a partir de amanhã, o público terá acesso.

Com curadoria de Júlia Peregrino e Ferreira Gullar e cenografia de Daniela Thomas e Felipe Tassara, a exposição pretende revelar as diversas facetas da controversa escritora, que morreu há 30 anos. ‘Teremos momentos muito intimistas e também ambientes de interação com o público’, comenta Júlia, que organizou uma exposição sobre Clarice há 15 anos.

‘A experiência literária de Clarice Lispector, de tão complexa que é, tem de ser vista em vários níveis que se opõem, se completam. Por exemplo, a Clarice contista, na maioria das vezes, difere da Clarice romancista, porque aquela, contraditoriamente, narra mais que esta, e mais explicitamente’, completa Gullar.

É justamente o texto de Clarice que vai nortear o visitante (veja no quadro ao lado). Já no primeiro ambiente, será possível entrar em contato com as frases da escritora, que conseguia dizer o indizível. Será um momento mais intimista se comparado, por exemplo, com a sala de número 5, talvez uma das mais interessantes.

Ali, em meio a 2 mil gavetas, o público descobrirá 65 com chave e que guardam um tesouro: material inédito, como originais, correspondência e documentos da escritora, além de primeiras edições e versões em outras línguas de seus livros. ‘São os segredos de Clarice’, explica Júlia, que contou com documentos do Acervo Clarice Lispector, sob a guarda do Arquivo Museu da Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa. ‘Ninguém terá contato direto com os originais, mas será possível, por exemplo, observar o processo de trabalho de Clarice em originais como o de Água Viva.’

Outros ambientes usam recursos audiovisuais. Em uma pequena sala, a projeção de um inseto evoca cenas de A Paixão segundo G.H. e a discussão, intensamente presente nas obras da autora, sobre natureza e religiosidade. No último corredor da exposição, um vídeo, gravado especialmente para a mostra, apresenta freqüentadores do Parque da Luz, ao lado do Museu, lendo trechos de A Hora da Estrela. ‘São exemplos clássicos de Olímpios e Macabéas.’

A mostra, que marca os 30 anos de lançamento justamente de A Hora da Estrela, consumiu cerca de três meses e meio entre pesquisa e montagem da exposição. O maior desafio, segundo a curadora, foi apresentar uma síntese compreensível e aceitável da obra da escritora. ‘O universo dela era, ao mesmo tempo, complexo e generoso, o que dificultou a escolha de frases’, conta Júlia. ‘Na conversa com Ferreira Gullar, decidimos que não era nossa intenção esgotar o assunto, mas fornecer um material que despertasse no visitante uma curiosidade em conhecer melhor o trabalho de Clarice.’

Júlia não desconhece a imensa quantidade de fãs da escritora, pessoas de diversas idades e sexo que propagam uma verdadeira veneração por ela. ‘No início do trabalho, recebi um e-mail de uma jovem espanhola que perguntava quando seria inaugurada a exposição, pois planejava acertar suas férias justamente para a mesma época.’

Gullar arrisca uma explicação: ‘As personagens não são seres excepcionais, antes são pessoas comuns, vivendo em um mundo, por assim dizer, mágico; mas de uma magia diferente, clariciana, feita de enigmas e perplexidades – uma magia nascida da exacerbação da palavra.’

A estréia oficial de Clarice Lispector na literatura ocorreu em 1943, quando, aos 23 anos, ela teve publicado Perto do Coração Selvagem, romance que inaugurou uma nova linguagem nas letras brasileiras, na trilha de Virginia Woolf. Mas seu nome já circulava fazia tempo, especialmente na imprensa, que publicou 16 contos, além de outros nunca editados.

Em pouco tempo, Clarice estabeleceu novos parâmetros para a literatura brasileira. Especialmente na relação tempo e espaço – ‘Há que se libertar da cultura para chegar à verdade. Esse modo de ver, se traduz, em termos literários, na ruptura do realismo, da visão descritiva e sensata que, aliás, quase nunca se encontra em sua obra’, observa Gullar. ‘A ruptura tinha de se dar tanto fora como dentro, mesmo porque, nela, a subjetividade prepondera sobre a objetividade, e disso resulta a violentação do discurso, da linguagem, que vai se acentuando de livro para livro.’

Além da exposição, que fica em cartaz até o dia 2 de setembro, Clarice será também lembrada por um site oficial, que entra no ar em maio, e pelo livro Entrevistas, que a Rocco lança no dia 5.

(SERVIÇO)Serviço Clarice Lispector – A Hora da Estrela. Museu da Língua Portuguesa. Praça da Luz, s/n.º, centro, tel. 3326-0775. 3.ª a dom., 10 h às 17 h. R$ 4 (sáb., grátis)