Pães que alimentam sonhos e fazem vidas crescer

O Estado de S. Paulo - 18/08/2003

seg, 18/08/2003 - 10h45 | Do Portal do Governo

Padarias Artesanais alcançam 1.700 entidades e garantem sustento familiar

Com três ovos, meio copo de óleo, três colheres de fermento, duas de açúcar, uma de sal, um copo de leite e farinha de trigo até dar o ponto as irmãs Noelma e Nancy Andrade fazem mais do que 30 pãezinhos. Elas garantem o sustento da casa. O marido de Noelma ganha R$ 500,00. O de Nancy está desempregado. ‘Temos uma profissão, um meio de vida’, diz Noelma. Antes de aprender esse ofício e de ganhar um kit-padaria do Fundo Social de Solidariedade, elas trabalhavam muito, como agora, mas não tinham rendimento. Hoje, conseguem pagar contas, fazer feira, mercado…

Risonhas, as baianas Noelma e Nancy, de 33 e 35 anos, três filhos cada uma, duas fortalezas, acordam às 3h30, deixam as crianças dormindo e vão para a Padaria Comunitária, no mesmo conjunto onde moram, uma de aluguel, outra de favor, no Jardim dos Francos, na zona norte. Preparam uma massa, deixam ‘descansar’ e já vão fazendo outra. Às 6 horas sai a primeira fornada. Ao fim do dia são 500 pães, entre os de leite – de 50 gramas, a R$ 0,12 cada – e os recheados, de meio quilo, que saem por R$ 1,50.

Mais mãos tivessem e mais fornos para assar os pães. ‘Não damos vencimento’, conta Nancy. A freguesia leva sacolas porque comprar embalagem não compensa.

Os pãezinhos custam metade do preço do pão francês. O lucro delas é pequeno, mas não dá para cobrar mais, pois todo mundo é pobre. Às vezes, nem dá para cobrar. ‘Outro dia, uma mulher me disse que tinha cinco filhos e nada para comer. Dei os pães a ela.’

Criativas, vivem inventando formas e sabores para os pães. Cobras, tartarugas, tranças, roscas-estrelas e sandálias-de-frade com gosto de queijo, presunto, ervas, cebola, milho verde, calabresa. Também pastéis, lasanhas, sonhos de forno e pizza no palito, uma ‘exclusividade’ da Padaria Comunitária. Os pães de R$ 0,12, os de maior saída, são leves e macios por dentro, com a casca crocante. Deliciosos. ‘Ficam sete dias molinhos. Congelados, duram até seis meses’, conta Noelma.

Cozinheira desempregada há quatro anos, ela aproveitou a gravidez do terceiro filho – Vítor, de 5 meses – para fazer cursos de técnicas de venda, capacitação de emprego e padaria artesanal. Estudava à noite. Com a irmã e outras mulheres do bairro criou uma associação e assim puderam receber o kit (forno, batedeira, liquidificador, balança e assadeiras) doado pela iniciativa privada.

Nutritivos – Em dois anos, o Programa Padarias Artesanais, do Fundo Social de Solidariedade, repassou 3.400 kits para cerca de 1.700 entidades cadastradas na capital e no interior. ‘Os pães que eles fazem são nutritivos. De cenoura, beterraba, ervas, fubá’, diz a primeira-dama, Maria Lúcia Alckmin, presidente do fundo. ‘Enquanto descascam a batata e preparam a massa, têm noções de ética, cidadania, higiene, saúde.’

Ela afirma já ter ouvido relatos emocionantes. Em Nova Odessa, um dos cinco kits foi para a Associação de Pais e Amigos de Excepcionais. ‘Alguns choraram ao ver os pães coloridos saírem do forno’, conta. ‘Pessoas que, muitas vezes, eram um peso para a família começam a fazer pães em casa, a ter uma fonte de renda e até a garantir o sustento de gente de que dependiam antes.’

‘Corro atrás’ – Izabel Cristina, de 18 anos, está fazendo cursinho para o vestibular de medicina. Robson Sabino, de 16, e Randal Juliano, de 14, agora andam incrementados, com roupas ‘da hora’. Tudo pago pela mãe, a diarista Maria Inez da Silva Oliveira, de 40. Além de trabalhar duas vezes por semana para um casal de atores, na Vila Madalena, ela complementa a renda fazendo tortas com recheio de atum, palmito e frango desfiado. Quem pode, paga R$ 40,00 por uma. Na comunidade, sai por preço de custo. ‘Eles não podem dar mais.’

Ela fez o curso de padaria em 2002, na Creche Imaculada Coração de Maria, no Jardim Princesa. Resolveu diversificar e se deu bem. ‘É por meus filhos que luto, corro atrás.’

A creche onde Maria Inez e cerca de mil mulheres aprenderam panificação atende 140 crianças. E é também uma espécie de pronto-socorro. Quando chove e os Córregos Canivete e Bananal transbordam, corre todo mundo para lá. Não que não entre água no prédio. Entra, mas só 1 metro. E tem dois andares para cima. ‘Pior do que enchente é desemprego’, diz Maria de Lourdes dos Santos Silva, a tia Lourdes, de 51 anos, cinco filhos. Ela começou a creche há 25 anos, com 30 crianças, na própria casa. ‘Foi a necessidade. A mulherada precisa trabalhar.’

Nenhuma paga nada. A ajuda vinha do marido, Murinaldo, eletricista. Algumas pessoas doavam 1 quilo de feijão, outro de arroz. E todas aquelas bocas para alimentar. ‘Não consigo negar um prato de comida’, diz Lourdes. Em 1982, depois de uma ‘burocracia terrível’, firmou convênio com a Prefeitura. Recebe R$ 125,00 por criança.

Pães e peixes – É no forno de casa que Maria José Pereira de Andrade assa os 20 pães que vende por dia, a R$ 2,00 cada, de porta em porta. Antes de fazer o curso de panificação, ela achava que ‘o horizonte tinha terminado’. O marido ficou desempregado e precisava se ocupar do filho pequeno, com um problema congênito.

Agora, pequenos comerciantes, eles até contrataram uma pessoa para cuidar da casa. Saem. Ela com cestas, o marido com caixas. ‘Não sobra nada.’ A luta é árdua, mas está contente com o que tem. ‘Não ganhei peixe. Aprendi a pescar.’

Rosa Bastos