Pacientes psiquiátricos. Mas artistas premiados

Jornal da Tarde - Terça-feira, 18 de outubro de 2005

ter, 18/10/2005 - 11h50 | Do Portal do Governo

Dois internos do Centro de Reabilitação de Casa Branca são premiados no 20º Salão de Artes Plásticas de Mococa

Quando o júri anunciou João Amaro dos Ramos, 60 anos, e Abrahão de Oliveira, 71, como vencedores do 20º Salão de Artes Plásticas de Mococa, não podia imaginar que os dois artistas em questão eram pacientes de um centro de reabilitação para deficientes mentais.

A dupla concorreu com artistas plásticos de todo o Estado. A comissão julgadora não quis conhecer o currículo dos participantes antes do veredicto final. ‘Foi uma alegria muito grande quando o júri, e os outros participantes, souberam que eram pessoas especiais’, disse Sueli Pereira Pinto, diretora do Centro de Reabilitação de Casa Branca (local onde os dois moram e são tratados).

João foi o primeiro colocado na categoria pintura, com o quadro ‘Prédios de São Paulo’. Abrahão venceu no quesito escultura, com uma série de estatuetas feitas de papel alumínio queimado. Cada um levou um cheque de R$ 2 mil para casa. Com o dinheiro do prêmio, João quer fazer um implante de cabelo. Já Abrahão quer um rádio-relógio.
Oriundo do manicômio de Franco da Rocha, João é interno há 36 anos. Não conhece família e não sabe onde nasceu.

No início, varria os corredores do centro de reabilitação. Convencido por um funcionário, aceitou participar do Atelier de Pintura. Diferentemente do que se pode imaginar, sua arte não é intuitiva. João gasta semanas com esboços e pesquisas para fazer um quadro. É dono de traços firmes e estilo definido. No ano passado, após visitar a exposição de Pablo Picasso, no Ibirapuera, incorporou elementos do cubismo em sua obra. O seu quadro preferido, ‘Macumba’, traz semelhanças impressionantes com as obras do mestre espanhol.

Ele tem dificuldades na fala. Mas se esforça para explicar porque quer fazer um implante de cabelo. Ao que tudo indica, sua lembrança mais remota parece ser a de algum funcionário de Franco da Rocha raspando sua cabeça. ‘Era uma cabeleira bonita. Foi maldade cortá-la.’
Abrahão é mais misterioso. Internado há 41 anos, ele quase não tira os olhos do chão para conversar. Assim como João, ele também é da turma de Franco da Rocha. Seu dom artístico foi descoberto por acaso. Funcionários encontraram, escondidas no fundo do seu armário, várias estatuetas feitas com marmitex amassado e queimado. Ele prefere imagens religiosas – é capaz de fazer uma Virgem Maria em poucos minutos. Além disso, gosta de alumínio usado, encontrado no lixo. ‘Gosto de acordar cedo para trabalhar. O rádio-relógio ia me ajudar a levantar.’
A diretoria do Centro de Reabilitação garantiu que os dois pedidos serão atendidos. As obras estão expostas no Museu de Artes Plásticas Quirino da Silva, em Mococa. (G.A.)

Um hospital-cidade com trabalho, rádio e cinema

O lar de João e Abrahão é o Centro de Reabilitação de Casa Branca, da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. Localizado no quilômetro 238 da Rodovia SP-340, próximo à cidade de Mococa, ele possui 34 mil metros quadrados e abriga cerca de 600 pacientes, com uma média de idade de 62 anos.

O centro foi construído, na década de 30, num local afastado das grandes cidades, para asilar hansenianos. Só em 1970, ele foi transformado em um hospital psiquiátrico. Trata-se de uma autêntica cidade. Os pacientes (a direção prefere tratá-los como moradores) participam de uma série de oficinas de artes, tecelagem e marcenaria. O dinheiro das vendas dos objetos produzidos no Centro é distribuído entre os próprios participantes. ‘Além de ganhar um dinheirinho, tenho muito mais calma hoje em dia’, revelou Ariovaldo Soares de Oliveira, 56 anos.

No local, existe uma rádio comunitária (que transmite programas da própria comunidade) e uma gráfica onde é impresso um jornalzinho interno. ‘Eu gosto de cantar músicas antigas. Me sinto uma estrela do rádio’, comentou o interno José dos Santos, 43 anos.

Um dos diferenciais do Casa Branca é o Cine Cocais. Uma vez por semana, um grupo de pacientes se reúne para assistir a um filme. Os preferidos são os velhos filmes do Mazzaropi. Mas os desenhos animados da Disney também fazem sucesso por lá.

O exemplo de Arthur Bispo do Rosário

João e Abrahão estão seguindo os passos de um dos gênios das artes plásticas brasileiras, Arthur Bispo do Rosário. Por muitos anos, ele esteve internado na Colônia Juliano Moreira, o maior e mais antigo manicômio do Rio de Janeiro.

Antes da internação, Rosário foi membro da Marinha e trabalhou como empregado para famílias endinheiradas do Rio. Sua vida deu uma guinada quando, na véspera do Natal de 1938, ele teve uma visão. Rosário teria presenciado um cortejo de anjos e soldados celestes cruzando os céus cariocas.

Ao alardear sua visão, Rosário acabou sendo internado. Ele foi diagnosticado como esquizofrênico por muitos médicos.

Internado, produzia estandartes, murais, bordados e outras peças feitas a partir de panos velhos, sucata e lixo.

Suas peças foram expostas por todo o mundo. Rosário morreu em 1989, aos 80 anos.

Artistas como Rosário, João e Abrahão só apareceram graças ao trabalho da psiquiatra Nise da Silveira. Seu horror à lobotomia fez dela a pioneira na humanização do tratamento da esquizofrenia. Foi ela quem primeiro aplicou técnicas livres de desenho, pintura e modelagem aos chamados ‘doentes mentais’.

Pelo trabalho que realizou, em 1957 Nilse ganhou uma bolsa de estudos do instituto C. G Jung, em Zurique, na Suíça. Lá, ela aprofundou os seus estudos e fez amizade com o próprio pai da psicologia analítica, Jung. Na Suíça, organizou uma exposição chamada Esquizofrenia em Imagens.