Osesp supera prova de fogo em Nova York

O Estado de S. Paulo - 14/11/2002

qui, 14/11/2002 - 10h29 | Do Portal do Governo

Em turnê pelos EUA, grupo mostrou a produção de qualidade que é feita no Brasil

NOVA YORK – Foi a prova de fogo. No ponto culminante de uma excursão iniciada em 24 de outubro, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) chegou a Nova York, num ensolarado domingo de céu claro e pouco frio, dia 10 de novembro. Parecia que, em suas bagagens, a Osesp tinha trazido um pouco do clima brasileiro, no dia de enfrentar, diante do Avery Fisher Hall, uma platéia habituada a ouvir regularmente o que a música internacional tem de melhor a oferecer. Valeu a pena. Era preciso estar lá para saber o que é a sensação de ver aquele enorme auditório, lotado, literalmente explodindo em aplausos aos últimos acordes da Sinfonia n.º 2 de Brahms.

O sabor primitivo da música, a multiplicidade dos planos sonoros, os luxuriantes coloridos do Uirapuru deram início ao concerto. Essa peça, datada de 1917, mas, provavelmente, escrita no início dos anos 30, é um dos pontos altos do repertório da Osesp. A orquestra tem na ponta dos dedos a eclética escrita de Villa-Lobos. E domina com toda a segurança os jogos de timbres com que ele evoca os sons misteriosos da floresta amazônica, nas inúmeras intervenções solistas – com destaque para o virtuosismo do solo de Cláudio Cruz, o spalla.

Foi impecável a execução, seja nos exuberantes ritmos de galope das cordas, seja nos momentos em que os ostinatos dos metais demonstram a familiaridade do brasileiro com a música de Stravinski, em especial o da Sagração da Primavera. Foi de extrema naturalidade e força de persuasão a leitura que John Neschling ofereceu dessa peça, muito associada a momentos marcantes da história recente da Osesp. E calorosa a resposta do público a esse primeiro número.

O Concerto para Dois Violões, Cordas e Percussão foi dedicado por Marlos Nobre, em 1995, ao Duo Assad. Os irmãos violonistas, Sérgio e Odair, o interpretam com o brilho técnico e a expansão expressiva que os transformou num dos melhores duos de violão atuantes no mundo inteiro. O uso da amplificação para seus instrumentos foi um ponto polêmico, e de fato sujeito a discussão; mas provavelmente inevitável, por causa das proporções do auditório em que, mesmo realçado pela amplificação, o som dos instrumentos era às vezes encoberto pela orquestra.

O concerto de Marlos Nobre é uma peça difusa, um tanto dispersiva, cujo interesse não se mantém de modo uniforme de uma ponta à outra. Pode ser muito interessante, por exemplo, na longa cadência com que se abre a Toccata, o segundo movimento, em que o virtuosismo dos Assads teve um grande momento. Mas é de qualidade variável no Concerto Grosso inicial. A passagem melodicamente mais atraente é a da Ária, no terceiro movimento; mas com a desvantagem de que o decalque muito nítido do Aranjuez, de Joaquín Rodrigo, o faz perder em originalidade. É de efeito o Presto com fuoco allucinante final, que põe à prova a habilidade técnica dos irmãos Assad, capazes de fazer da peça uma interpretação que pôs em evidência o que ela tem de melhor.

Execução que agradou muito ao público pois, trazidos de volta ao palco pelos aplausos, Sérgio e Odair apresentaram um extra de fazer bater mais rápido os corações brasileiros presentes na sala: uma linda transcrição para duo de violão das Noites Cariocas de Jacó do Bandolim (foi, segundo o comentário de alguns músicos da orquestra, a primeira vez que o Assad foi chamado a tocar um extra, durante a excursão).

A Sinfonia n.º 2 em Ré Maior Op. 73, de Johannes Brahms, ocupou a segunda parte. Foi o momento de demonstrar que a Osesp não é apenas uma orquestra de interesse regional, capaz de executar bem os nossos compositores, mas uma formação de envergadura mais ampla, cuja interpretação das grandes obras do repertório é madura e rica em expressão e inteligência do texto.

Foi enérgica e apaixonada a execução de John Neschling, desde a célula de três notas com que os metais iniciam, de modo majestoso, o Allegro non troppo – e eles o fizeram com muita firmeza de entonação. No Adagio non troppo, a Osesp teve um belo momento ao moldar a contemplativa melodia do primeiro tema, exposta pelos violoncelos. Sem deixar de dar atenção à complexidade técnica com que esse movimento é escrito, Neschling deu-lhe a exata carga emotiva, de um pudico lirismo, que torna muito intensos os tempos lentos das sinfonias de Brahms.

Mas foi o último movimento o ponto alto do concerto. Precedeu-o, em nítido contraste com a concentração lírica do Adagio, a alegria serena do Allegretto grazioso, quasi andantino, com seu tom de dança, cujo colorido pastoral foi delicadamente realçado pelas madeiras da Osesp. À exposição ‘sotto voce’, pelas cordas, do primeiro tema do Allegro con spirito, baseado na célula inicial da sinfonia, segue-se uma explosão de alegria de toda a orquestra, que Neschling conduziu de modo exuberante. Daí em diante, foi cheia de eletricidade a condução do movimento final, até a coda, cuja fanfarra, saída do segundo tema – que fora lindamente cantarolado pelos violoncelos e violas no registro grave -, levou o concerto a um encerramento triunfal.

Em extra, Neschling executou o Prelúdio das Bachianas Brasileiras n.º 4.

Nada melhor do que o lirismo puro dessa linda melodia – na qual Villa-Lobos soube captar algo de muito profundo da nossa maneira de sentir – para pôr um ponto final nesse concerto. Em que se mostrou, a um público habituado a ouvir o que há de melhor no mundo, um pouco da música com alto padrão de qualidade que se pode realizar em nosso país.

Lauro Machado Coelho (especial para o Estado)