Osesp agora é a orquestra do Brasil

Folha de S. Paulo - São Paulo - Terça-feira, 16 de novembro de 2004

ter, 16/11/2004 - 8h37 | Do Portal do Governo

Arthur Nestrovski
Articulista da FOLHA

Quando a orquestra atacou o segundo bis – o esperado ‘Mourão’, de Guerra-Peixe -, ninguém mais tinha dúvida da consagração. Foi um caminho longo e tortuoso; mas finalmente, depois de tocar em Buenos Aires (2001), Nova York (2002) e Zurique (2003), a Osesp chegava ao Rio de Janeiro. Quer dizer: chegava ao Brasil, que a acolheu de braços abertos, para além de qualquer velha rivalidade.

Tortuoso e longo também foi o caminho imediatamente anterior ao fim de semana no Teatro Municipal carioca. Nada menos do que 13 outras capitais, começando por Belo Horizonte e Brasília e continuando por Goiânia, Manaus, Belém, Teresina, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Recife, Maceió, Aracaju e Salvador. Tinha razão o maestro John Neschling ao dizer, então, que a Osesp agora passa a ser definitivamente uma orquestra do Brasil, mais do que do Estado de São Paulo -muito embora este continue o seu único mantenedor oficial.

Foi o bastante para que alguém gritasse ‘bravo!’ do balcão, enquanto o governador Geraldo Alckmin colhia os aplausos do povo do Rio. Do outro lado, os camarotes oficiais chamavam a atenção pelo vazio. Eram os únicos centímetros livres do teatro, aliás; e o silêncio dali parecia chocantemente inapropriado, em contraste com o silêncio musicalíssimo da multidão, escutando depois a ‘Nona Sinfonia’ de Mahler (1860-1911).

Só a escolha da ‘Nona’ já valia como voto de seriedade da orquestra e expressão de respeito e confiança pela platéia. Última sinfonia composta pelo compositor austríaco, num período de crise afetiva (morte da filha, distanciamento da mulher), profissional (saída da Ópera de Viena) e musical (‘perdi a claridade […] e tenho de aprender tudo de novo’, como escreveu em carta ao regente Bruno Walter), constitui virtualmente um testamento da música tonal, às vésperas de desaparecer num novo mundo.

São quase 80 minutos de uma música que repassa toda a tradição por dentro, até se despedir de si mesma no fim.

Foco

Voto de seriedade nem sempre é garantia de transcendência. O primeiro movimento é um monumento de meia hora de música, incrivelmente erguido sobre um tema mínimo (uma citação interrompida da sonata ‘Les Adieux’, de Beethoven). O segundo transporta essas grandezas para o mundo natural. A Osesp mantinha suas altas dignidades, mas parecia um pouco cansada ou fora de foco.

Então deu-se o milagre. Começou o ‘Rondó’. Dois compassos e o pianista Nelson Freire se aprumou na cadeira, verticalizado em escuta. Daí para a frente, era a grande orquestra dando o seu melhor, o que significa também esquecida de si, seguindo outra e maior inteligência. Nas ironias do terceiro movimento, Mahler provoca verdadeiros choques, na junção do que há de mais kitsch com o que há de mais transcendental. No último, fica só a transcendência, crescida e refletida, até que o gigantesco romance em música se desfaz em sussurros de ré bemol.

Nem a última nota da viola tinha terminado e a ovação já tinha começado. A chuva de rosas, depois, foi um estranho toque carnavalesco. Mas a comoção era contagiante e fazia pensar no que não seria o país com 14 orquestras assim, em 14 capitais. Mudava o Brasil. Alguém duvida de que seria uma mudança para melhor?

Avaliação: * * * *