Os programas PPP

Folha de S. Paulo - Opinião - Quinta-feira, 27 de maio de 2004

qui, 27/05/2004 - 9h54 | Do Portal do Governo

CLÁUDIO LEMBO E MONICA HERMAN CAGGIANO

A última década do século 20 trouxe à tona uma série de desafios a um Estado fragilizado sob o peso de economia de inspiração centralizadora, um Estado burocratizado, pressionado por compromissos financeiros e, principalmente, carente de instrumentos adequados a oferecer resposta satisfatória às demandas sociais.

No Brasil, a exigência de novos mecanismos para apoiar a auto-sustentabilidade sensibilizou analistas e legisladores. Reflexo disso é a reorientação constitucional, inaugurada com a emenda constitucional nº 3, de 1993, que desencadeou o processo de redução da presença do Estado na economia.

Reservando-lhe o papel de regulador da atividade econômica e assegurando-lhe a possibilidade de transferir para o setor privado parte das suas incumbências, a Constituição Federal preparou o terreno para a colaboração da esfera privada no segmento dos serviços e obras públicas, buscando imprimir às iniciativas públicas agilidade, presteza, competitividade e custos menores -enfim, níveis mais próximos à idéia de excelência que o princípio da eficiência reivindica.

Nesse contexto, ajustam-se os programas PPP (Parceria Público-Privada) à perspectiva constitucional de modernizar a ação estatal, dando-lhe o apoio do setor privado e envolvendo a sociedade nas tarefas remanescentes do setor público.

Na plataforma PPP, não há lesão aos standards constitucionais. Envolve projetos de parceria com o setor privado para a realização de obra pública ou a execução de serviços; isso, porém, no âmbito de um quadro balizado pela legalidade e pelo atendimento aos princípios a nortear a ação estatal, um contexto atento ao princípio licitatório, que preserva e privilegia o poder de controle e fiscalização estatal, em nenhum momento inibidor da ‘potestad publica’.

No entanto oferece referida plataforma de inovações, reclamando por um sistema de garantias mais atraente para o setor privado, pela introdução de prazos mais condizentes com a exigência de amortização dos investimentos efetuados, por um desenho próprio para a fórmula remuneratória e, de modo especial, exigindo um ambiente de credibilidade, o que conduz à imposição de uma receita apta a assegurar concreta governabilidade aos programas PPP.

O padrão PPP não envolve e não se envolve com a figura da privatização. Embora transfira para o domínio privado a feitura de obra pública, acompanhada da execução de serviço ou tão-somente esse, mediante um adequado mecanismo remuneratório (tarifário ou não), não há o repasse da responsabilidade final. Essa continua na esfera estatal, pois a obra e o serviço continuam na área de competência do poder público.

Os contornos da PPP, todavia, recomendam um tratamento específico, para garantir eficácia à receita proposta e um hábil sistema de governança. Daí resultarem as propostas de legislação especial para disciplinar o tema e enfrentar os tópicos de maior sensibilidade, a exemplo de padrão adequado para o enquadramento jurídico desses elementos: sistema de remuneração; sistema de garantias; prazos; sistema de controle e fiscalização do poder público; sistema para assegurar a governabilidade do projeto.

A União, o Estado de São Paulo -por iniciativa do governador Geraldo Alckmin- e o Estado de Minas Gerais são pioneiros na tentativa de oferecer um tratamento legal ao novo figurino que pretendem aplicar, notadamente, no espectro dos projetos de desenvolvimento da infra-estrutura.

Em São Paulo, o projeto de lei nº 1.141/2003 detém-se sobre os princípios de regência e, sob a nomenclatura de diretrizes, anuncia, como nos demais textos, a eficiência, o respeito aos interesses e direitos dos destinatários dos serviços, a indisponibilidade das funções reguladora, controladora e fiscalizadora do Estado, a universalização do acesso a bens e serviços essenciais e a transparência.

Nos moldes propostos pelo governo do Estado de São Paulo, o programa PPP assume a natureza de ‘mecanismo de colaboração entre o Estado e agentes do setor privado’, tendo por objeto: a) intervenções na infra-estrutura pública; b) prestação de serviço público; c) exploração de bem público; d) exploração de direitos de natureza imaterial de titularidade do Estado, tais como marcas, patentes, bancos de dados, métodos e técnicas de gerenciamento e gestão.

A iniciativa paulista preconiza a criação de uma entidade, a Companhia Paulista de Parcerias, uma sociedade por ações, direcionada a apoiar e viabilizar a implementação dos programas PPP, inclusive para servir de suporte ao oferecimento de garantias adequadas.

Não há e não se vislumbra nessa nova fórmula a marginalização de princípios e regras a orientar a atuação administrativa. Não se afasta a responsabilidade fiscal, quando o erário vier a ser onerado; não se ignora a exigência de licitação -ao contrário, o projeto federal é enfático ao impor a mais severa de suas modalidades, a concorrência- para fins de contratação PPP (art. 10 do projeto de lei nº 2.546, de 2003); a reserva da função reguladora, fiscalizadora e de controle resta assegurada.

Os programas PPP, de fato, caracterizam-se por introduzir na área de atuação da administração pública instrumentos dotados de maior grau de flexibilidade. Procedimentos esses que, nos termos de resultados obtidos em outros países, irão concorrer para incrementar a eficiência no atendimento de demandas da coletividade. Exatamente esse atributo, todavia, é que indica a exigência da adequada governança dos programas PPP, em razão de suas peculiaridades, em razão da plasticidade que os tornam extremamente sensíveis, enfim, em razão da responsabilidade que o Estado assume ao transferir uma atribuição sua para o particular, o qual, a par de assumir o compromisso de obtenção do financiamento da atividade, deve incorporar também a obrigação do adequado desempenho.

Cláudio Lembo, 69, professor titular de direito constitucional da Universidade Presbiteriana Mackenzie, é vice-governador do Estado de São Paulo.

Monica Herman Caggiano, 56, professora associada de direito constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e professora titular de direito constitucional da Universidade Presbiteriana Mackenzie, é chefe-de-gabinete do vice-governador de São Paulo.