Os pisos salariais paulistas

O Estado de São Paulo

qui, 26/04/2007 - 14h48 | Do Portal do Governo

Com o projeto enviado ontem à Assembléia Legislativa, o governador José Serra propôs a introdução, neste Estado, dos pisos salariais de que trata a Constituição no seu capítulo dos direitos sociais. Estes incluem “piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho”.

No governo FHC, esse dispositivo foi regulamentado pela Lei Complementar 103, de 14/7/2000, que delegou às unidades federativas a competência de instituir os pisos para os empregados que não tenham piso salarial definido em lei federal, convenção ou acordo coletivo de trabalho. Por força da mesma lei, os pisos não se aplicam às remunerações dos servidores públicos municipais, enquanto o Estado já remunera acima do maior piso proposto. O projeto também não se aplica a contratos de aprendizagem, cujo piso continuará sendo o salário mínimo nacional.

Com essas características, os pisos, que têm a função de salário mínimo estadual para os trabalhadores que o projeto especifica, contornam parcela importante das distorções associadas ao salário mínimo nacionalmente unificado, fixado pelo governo federal. Ou seja, são de competência do governo estadual, mais próximo das condições do mercado de trabalho local; não interferem na missão das entidades sindicais, procurando alcançar principalmente os trabalhadores não organizados e sem condições de obter seus próprios pisos; não se aplicam aos servidores municipais, ficando a critério dos prefeitos adotá-los ou não; e não constituem pisos de regimes previdenciários.

Aliás, percebe-se que um dos objetivos da referida lei complementar era sabiamente o de deixar a fixação de remunerações mínimas de trabalhadores ativos por conta dos Estados, com o governo federal administrando o salário mínimo nacional de olho no que é hoje o seu principal papel, o de piso dos benefícios de aposentadorias e pensões pagas pelo INSS.

O governo Lula praticamente esgotou a política, como várias outras iniciadas por FHC, de reajustar esse salário mínimo bem acima da inflação, em face dos danos que essa prática acabou por trazer às finanças do INSS. Assim, num dos projetos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), impõe-se um teto para o reajuste do salário mínimo nacional, pois se prevê que, no período compreendido entre 2008 e 2011, ele sofrerá reajustes iguais à inflação medida pelo INPC, acrescida da taxa de crescimento real do PIB, com dois anos de defasagem.

Os pisos estaduais já foram adotados pelo Rio Grande do Sul, pelo Paraná e pelo Rio de Janeiro. No primeiro caso, quatro pisos e seis nos dois outros. Em São Paulo, foram propostos três, com valores de R$ 410, R$ 450 e R$ 490. O primeiro, que alcança empregados domésticos e trabalhadores agrícolas, na faixa de ocupações de menor complexidade do trabalho, deverá ser o mais importante no seu alcance.

Em se tratando de uma novidade, é importante que no debate sobre o assunto se perceba que os pisos são fixados por ocupação (por exemplo, a de garçom), independentemente da atividade econômica e da região em que essa ocupação é exercida. Já os pisos negociados por sindicatos dizem respeito à atividade econômica e à região de sua jurisdição.

Se aprovado o projeto do Executivo paulista, os pisos darão mais um passo em seu avanço no Sul e no Sudeste, e é sintomático que isso ocorra nas regiões onde o PIB per capita é bem superior ao da média nacional. Geograficamente, esses pisos poderiam avançar bem mais, não fora a insistência do governo federal em impulsionar seu mínimo nacional, mais de olho nos benefícios para aposentados, dificultando, assim, a adoção de pisos em outros Estados e regiões, dado que se sobrepõem ao valor desse mínimo.

Neste país, onde muito no governo se faz casuisticamente, na sua concepção os pisos estaduais têm característica programática no sentido político-partidário, e cabem muito bem no S do PSDB, o partido do governador. Como me disse um marqueteiro político, o projeto “é a cara do partido”.

De fato, na visão social-democrata, os mercados devem ser deixados a operar livremente para determinar preços e alocar recursos produtivos, mas cabe ao governo intervir para corrigir distorções desse processo. No mercado de trabalho, há segmentos de trabalhadores, como os de empregados domésticos e trabalhadores agrícolas, que muitas vezes recebem remunerações aviltantes. Isso, em face de sua dificuldade de barganhar, individual ou coletivamente, por outras mais condizentes com o valor dos serviços que prestam.

Esse tipo de intervenção é prática internacional, em particular por partidos com o mesmo S ou o SD estampado em suas siglas. Por exemplo, na eleição francesa em andamento, a candidata socialista Ségolène Royal tem como uma de suas bandeiras o aumento do salário mínimo.

Outro aspecto interessante é a discussão do assunto pela Assembléia Legislativa, da qual pouco se ouve falar, pois o que usualmente mais interessa ao cidadão é primordialmente discutido no Congresso Nacional e nas Câmaras Municipais. Portanto, com o projeto, o Legislativo do Estado passará a tratar de um assunto até aqui federal, ampliando, assim, a sua responsabilidade e tornando mais interessantes os debates da Casa.

A aprovação do projeto será um avanço sob vários aspectos. Em particular, fortalecerá São Paulo como ente de uma autêntica federação e os pisos como opção para uma política de remunerações mínimas mais condizente com as condições locais de cada Estado, evitando-se as muitas distorções do salário mínimo nacionalmente unificado.

Roberto Macedo, pesquisador da Fipe-USP e professor associado à Faap, foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda.

O Estado de São Paulo, 26 de abril de 2007.