Os campeões do vestibular

Veja São Paulo Nesta virada de ano, cerca de 127 000 jovens enfrentaram um dos desafios mais difíceis na vida estudantil: o vestibular da Fuvest. Apenas 10 552 – um […]

dom, 24/02/2008 - 14h54 | Do Portal do Governo

Veja São Paulo

Nesta virada de ano, cerca de 127 000 jovens enfrentaram um dos desafios mais difíceis na vida estudantil: o vestibular da Fuvest. Apenas 10 552 – um em doze – conquistaram o direito de estudar na Academia de Polícia Militar do Barro Branco, na faculdade de medicina da Santa Casa e em um dos 159 cursos da USP, que, além de ser a maior universidade brasileira, alia a excelência acadêmica com o benefício de ser gratuita. Entre esses felizardos, há um seleto grupo de calouros que não só passou por um funil apertadíssimo como encabeçou as listas de aprovados em carreiras como medicina, design, fisioterapia, relações internacionais, administração, psicologia, relações públicas, oficial da Polícia Militar, publicidade e artes cênicas. O perfil desses estudantes campeões é parecido: oito têm pai ou mãe com curso universitário, oito dominam pelo menos uma língua estrangeira e sete fizeram cursinho. Surpresa: metade deles estudou em escola pública. É interessante que boa parte dos entrevistados, apesar de disciplinados como soldados, considere improdutivo mergulhar desesperadamente no estudo durante a preparação para a prova. A seguir, a receita de sucesso de dez calouros nota 10.

Aventuras pelo mundo antes do vestibular

Aos 22 anos, João Paulo Rocha Almeida é mais velho que 90% dos estudantes admitidos em 2008 na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Sua preparação, no entanto, levou apenas um ano, ao contrário do que ocorre com 47% dos candidatos, que repetem duas vezes ou mais o ritual do cursinho pré-vestibular. Na primeira tentativa, ele conseguiu o feito de atingir 919 pontos (de 1 000 possíveis) e ser o melhor da Fuvest em medicina. “Encarei o vestibular quatro anos depois de ter me formado na escola”, diz. “Aos 18 anos eu só queria saber de balada, academia e internet.”

Em 2004, logo que deixou o colégio Montessori Santa Terezinha, no Jabaquara, resolveu prestar vestibular para nutrição na USP – passou em 11º lugar. Muitas matérias se assemelhavam às da medicina, e a quantidade de mulheres na sala era incrivelmente desproporcional à de homens, um prato cheio para um jovem com os hormônios a toda. “Havia 35 mulheres na sala e apenas cinco homens”, conta. Mas acabou desmotivado com o curso após um ano e resolveu viajar. Morou um semestre nos Estados Unidos e quatro meses na Espanha. Aproveitou a temporada fora para aperfeiçoar o inglês e o espanhol. Na volta, insistiu na faculdade de nutrição por mais um ano, continuou infeliz e resolveu resgatar o sonho de ser médico. “Afastei-me dos amigos, fiquei solteiro, parei de malhar e engordei 18 quilos”, lembra João Paulo, que em 2007 encarou uma rotina de treze horas diárias de estudo. Não, ele não acha que exagerou. Tem consciência de que o vestibular foi apenas uma pequena amostra da pressão que vai sofrer daqui para a frente como estudante de medicina e futuro doutor.

Batucadas para espantar a tensão

Este ano será agitado para a estudante Tamiris Akemi Shimabukuro. Por causa das comemorações do centenário da imigração japonesa, seu grupo de taiko (tradicional instrumento de percussão da Terra do Sol Nascente) tem uma série de apresentações agendadas, aqui e em outros estados. “Em 2007, deixei de viajar para Brasília, por exemplo, para me dedicar ao vestibular”, conta ela, que usava as batidas no tambor para relaxar da tensão pré-provas. Nenhum de seus amigos duvidava que Tamiris seria uma das campeãs da Fuvest. Afinal, seu desempenho no colégio era notável. A nota mais baixa que tirou em todo o 3º ano do ensino médio foi 9,3 em português e inglês. Além de passar em primeiro lugar em administração na USP, foi aprovada em ciências econômicas na Unicamp (18º lugar) e na UFSCar (terceiro lugar), em ciências sociais na Unifesp e (ufa!) em letras na Unesp (ambas em primeiro lugar). Filha de um comerciante e de uma professora de matemática, a sansei (neta de imigrantes) de 17 anos estava mesmo indecisa sobre que curso fazer. “Assisti a algumas aulas de administração na USP, achei interessante e por isso optei pelo curso”, diz. “Mas confesso que não sei se é essa carreira que quero seguir.”

A vitória da aluna nota 7

Uma choradeira tomou conta da casa da família Heuko, em Perdizes, na tarde do último dia 8. Com o telefone no ouvido, a vestibulanda Luciana berrava e soluçava ao lado da mãe, Ângela, que também não segurava as lágrimas. Do outro lado da linha, uma amiga dava a notícia: Luciana era a primeira colocada no curso de design da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. “A ficha ainda não caiu”, diz ela, que é uma aluna, digamos, nota 7. “Nunca fui a melhor da classe.” Aliás, na 8ª série, chegou a ser reprovada no concorrido vestibulinho da Escola Técnica Estadual de São Paulo (Etesp). Tentou de novo, passou e teve de fazer o 1º ano do ensino médio pela segunda vez. “Não me arrependo, foi importante em minha formação”, afirma Luciana, que faz parte da pequena parcela de 15% dos aprovados em design que cursaram o 2º grau em escola pública. No ano passado, fez cursinho e virou rata de simulados. Trocou as aulas de sapateado (que praticou por dez anos) e de desenho (úteis para a prova específica) por pilhas de exercícios, principalmente de física, seu ponto fraco. Só não abriu mão do namoro de quatro anos com o estudante de direito da USP Sérgio Nascimento, com quem curtia barzinhos e cinema nos fins de semana. “Ele me ajudou a ficar tranqüila o tempo todo.” Luciana só teve certeza da profissão depois de visitar uma exposição de design no Memorial da América Latina. “Naquele dia, me imaginei expondo ali”, lembra ela, que já começa a sonhar com os troféus, brindes e produtos com os quais pretende desenhar seu futuro.

Em regime militar

Ele passou na Fuvest mas não vai estudar na USP – suas aulas, aliás, já começaram, há duas semanas. Vai ganhar salário durante o ensino superior (1 790 reais mensais) e tem moradia e alimentação garantidas. Na Academia de Polícia do Barro Branco, que forma oficiais da Polícia Militar, Rafael Salviano Silveira ficará sob um sistema rígido e precisará cumprir regras impensáveis para um calouro de qualquer outro curso cujo acesso se dá pela Fuvest – entre as quais não dormir fora do alojamento (salvo às sextas e aos sábados), manter seu armário bem arrumadinho, barbear-se diariamente e cortar o cabelo toda semana. “Sou soldado e estou acostumado com a disciplina militar”, diz. Assim como um terço dos aprovados, Rafael já é da PM. Prestou concurso há cinco anos para entrar na corporação, mas agora tem a possibilidade de se formar oficial (antes, a patente máxima que alcançaria seria a de subtenente). “Meu sonho é chegar a coronel”, conta.

Para ingressar no Barro Branco não bastam as duas fases do vestibular convencional. Os candidatos enfrentam ainda exames psicológicos e médicos e uma bateria de testes físicos (corrida, natação, exercícios abdominais…). A carga de estudos é pesada – no 1º ano, são sete horas diárias de aulas teóricas, uma hora de atividades físicas e um sem-número de ritos militares durante o dia. Rafael estava com sua mãe, em Marília, no último dia 7, quando soube que havia se classificado em primeiro lugar.

De atrasadinha a primeirona

Quinze minutos de atraso impediram Wanessa Pires Teixeira Ber-nardes de prestar a Fuvest em 2005, quando acabara de concluir o ensino médio em uma escola pública – e, ao mesmo tempo, fizera um ano de cursinho pré-vestibular. “Achei que a prova começaria às 14 horas. Então cheguei às 13h15.” Os portões já tinham se fechado, claro, pois o exame estava marcado para as 13 horas. Decepcionada com o episódio, resolveu planejar tintim por tintim sua estratégia para vencer no vestibular. “Resolvi que trabalharia durante um ano para juntar dinheiro e, depois, investiria em um cursinho”, conta. E foi assim que Wanessa passou 2006, dedicando-se a seu emprego como caixa de uma loja de telefonia celular.

No ano seguinte, amigos e namorado acabaram sacrificados por causa de sua obsessão de passar na Fuvest. “Nesse período, tive de dizer vários nãos”, afirma. “A minha turma brincava que eu tinha morrido.” Para relaxar, devorava romances policiais da inglesa Agatha Christie, de quem é fãzaça – tem sessenta livros da escritora. E, mesmo nos momentos de diversão, não conseguia se desligar totalmente. “Via um filme americano, por exemplo, e aproveitava para treinar meu inglês.” Tanto esforço acabou em pizza. No bom sentido. Quando foi divulgado o resultado do vestibular, no dia 6, a comemoração da família Bernardes foi dupla (o irmão de Wanessa, Walter Júnior, também passou na Fuvest em sistemas de informação). Todos devoraram umas redondas e brindaram noite adentro.

Teatro depois de flerte com arquitetura e física

Francisco Moreira Turbiani está lendo O Processo, de Franz Kafka, ouve Queen e outras bandas de rock jurássico no último volume, adora dançar foxtrote e se derrete de elogios à peça Os Sertões, dirigida por José Celso Martinez Corrêa. Aos 17 anos, este paulistano com espinhas no rosto e jeitão desengonçado cultiva hábitos incomuns para um adolescente. Na hora de escolher a carreira, flertou com arquitetura e física, mas optou por… artes cênicas. Apostou tudo num único vestibular, a Fuvest. Na primeira tentativa foi o melhor dos quinze convocados para o curso. Saiu direto da Escola Móbile, onde estudou desde o pré, para as carteiras – e o palco – da Escola de Comunicações e Artes (ECA). Para ir à segunda fase da prova, teria de acertar pelo menos 59 questões (de 89 possíveis), mas cravou 77, o suficiente para se dar bem em qualquer curso da USP.

Para desespero dos nerds, ele jura de apostilas juntas que estudava no máximo duas horas por dia em casa. No resto do tempo aproveitava para ler (adora ficção), praticar malabares, tocar bateria e ouvir alguns discos de sua pequena coleção de vinis. Só deixou de lado as classes de dança de salão, que freqüentava havia três anos, e as de teatro na escola. “Entrei para o grupo aos 11 anos, porque era muito tímido”, lembra ele, que pretende trabalhar na montagem de peças. “Foi o que me ajudou a definir a profissão e a enfrentar as provas específicas.”

O plano B deu certo

Na medicina da USP, os estudantes formados em escolas particulares respondem por cerca de 90% das matrículas. A maior parcela pertence a famílias que vivem com renda mensal entre 7.000 e 15.000 reais. Em 76% dos casos, os pais têm diploma universitário na parede. Dos que entram, 64% são homens. Foi por essa peneira que Carolina Favero, de 23 anos, tentou passar durante seis anos consecutivos. Criada pela mãe, Helenice, na casa dos avós, o metalúrgico Osnei e a dona-de-casa Celcina, ela sempre estudou em escolas públicas. Tinha o exemplo materno para seguir: Helenice cursou faculdade de pedagogia e conquistou um emprego na área administrativa do Hospital das Clínicas. Carolina apaixonou-se por seu ambiente de trabalho. “Nutri o sonho de cuidar de velhinhos”, diz. No sétimo vestibular que prestou, resolveu trocar medicina por uma carreira de concorrência um pouco menor. Assinalou fisioterapia na ficha de inscrição da Fuvest e foi fazer a prova com tranqüilidade. Afinal, preferia entrar em medicina numa das quatro outras faculdades para as quais estava se candidatando. Deu zebra: Carolina passou em primeiríssimo lugar em fisioterapia na USP. E nada mais. “Acho que o nervosismo me atrapalha.” Resignada, ela afirma: “Estou pronta para gostar de fisioterapia”.

Na contramão dos especialistas

Um simulado por semana com quatro horas de duração. Provas todos os dias. Cursinho à tarde depois do colégio. Palestras à noite. Aulas optativas, como de geometria avançada e geopolítica, aos sábados. O 3º ano do ensino médio de Michelle Yumi Kato foi assim, abarrotado de compromissos acadêmicos. Deu certo e hoje ela está radiante por ter passado em primeiro lugar no curso de publicidade e propaganda da USP. Parou de fazer ioga, sair com os amigos e namorar. “Namorar nessa fase seria o equivalente a perder a independência e o foco nos meus planos”, diz ela.

Não é de hoje que Michelle se encaixa no estereótipo de CDF, sigla que define o estudante que se afasta das atividades normais da idade para se enterrar em livros. Na 7ª série, com 13 anos, estudava quatro horas por dia em casa para se preparar para o “vestibulinho” do Colégio Etapa, na Vila Mariana, onde cursou o ensino médio. O esforço e a disciplina resultaram em isenção de 80% da mensalidade, desconto oferecido aos melhores alunos. Da mãe, a dona-de-casa Nilza (formada em bioquímica), Michelle diz ter ouvido o mais sábio dos conselhos: “Não pense nos concorrentes nem na universidade. Na hora do vestibular, o seu inimigo é a prova”.

Até oito livros por mês

Com 18 anos de idade, André Alves dos Reis discute obras dos filósofos Maquiavel e Platão com a mesma naturalidade de quem fala sobre futebol. Lê na internet os jornais Le Monde Diplo-matique e The Washington Post. Seu passatempo predileto é debater política internacional com amigos num barzinho vizinho do Masp. Nos fins de semana, nada de balada. Filho único de um auditor e uma economista, prefere passar horas nas seções de psicologia e filosofia da Livraria Cultura, no Conjunto Nacional. “Ler os filósofos ajuda a desenvolver o pensamento lógico”, diz ele, que chega a devorar até oito livros por mês e acaba de concluir um romance de 400 páginas. Por isso, a notícia de que tinha passado em primeiro lugar no curso de relações internacionais da USP – a única faculdade em que prestou – não lhe causou surpresa. “Sempre me preparei para isso.”

Na 8ª série, foi medalha de ouro numa Olimpíada de Matemática. Só tinha notas 10 no boletim do 1º e do 2º ano do ensino médio, cursados no Colégio Objetivo com uma bolsa de estudos integral. Também foi o primeiro entre os 5.250 treineiros na área de humanas inscritos na Fuvest de 2007. Sua pontuação teria sido suficiente para ele ingressar na faculdade, caso tivesse terminado o colégio. Depois de tanto treino, não rachou de estudar. Nem caderno tinha. “Prestava atenção nas aulas, tirava dúvidas com o professor e anotava alguma coisa na própria apostila”, conta André, que à tarde costumava dormir, ir ao cinema ou ler. “Para mim, a Fuvest é um jogo, não um pesadelo”, afirma ele, que atualmente não tem namorada e sonha trabalhar na Organização das Nações Unidas (ONU).

A carateca que virou “bichete alfa”

Quando Thaís de Albuquerque Rodrigues chegou ao campus da USP para fazer sua matrícula, às 8h15 do dia 11, a secretaria ainda nem estava aberta. Os veteranos, que já tinham vasculhado seu perfil no site de relacionamentos Orkut, logo a reconheceram. “Já na fila de inscrição ganhei o apelido de bichete alfa”, conta ela. A referência à primeira letra do alfabeto grego é uma “homenagem” ao fato de ela ter sido a mais bem classificada entre os aprovados de psicologia. Aliás, a fama de primeirona da turma é antiga. “Que eu me lembre, minha pior nota na escola foi um 7,5 em matemática, na 4ª série”, afirma ela, que concluiu o ensino médio em 2003. A exemplo do avô, que mora em Ribeirão Preto, queria ser médica. Escolheu um plano B após quatro anos de frustrações nos vestibulares.

Em 2006, depois de dois anos de cursinho na capital, Thaís decidiu mudar-se para o interior, na casa dos avós, e assim ficar um pouco longe dos amigos. “Precisava de sossego para me concentrar mais nos estudos”, diz. Matriculou-se no Liceu Albert Sabin, em Ribeirão Preto, e pegou pesado. Tinha aula das 7 horas às 13h15. Em casa, retomava os estudos por mais cinco horas. E para relaxar? Extravasava toda a tensão com golpes de caratê. “Treinava três vezes por semana, das 20 às 21 horas, em uma academia de lá”, conta Thaís, que é faixa roxa. “Às vezes chegava em casa tão ligada que voltava a estudar até as 23 horas.”