Olhar sensível sobre o choque com a morte

O Estado de S. Paulo

qui, 28/05/2009 - 8h20 | Do Portal do Governo

Em sua terceira semana com a Osesp, o maestro Claus Peter Flor revela emoção de sinfonia do compositor checo Josef Suk

Escrita sob o signo de um duplo luto – pela morte de sua mulher, Otilie, que tinha apenas 27 anos; e a de seu sogro, Antonín Dvorák, o professor venerado – a Sinfonia nº 2 em Dó Menor Op. 27 Asrael, de Josef Suk, é um dos grandes monumentos da música checa. Que essa obra maior de um compositor muito pouco conhecido no Brasil seja executada pela primeira vez entre nós já é um fato marcante. E a leitura carregada de emoção que Claus Peter Flor lhe deu, quinta-feira, em seu terceiro concerto à frente da Osesp na Sala São Paulo, torna-o ainda mais significativo.

Longa elegia para seus dois entes queridos – e o nome escolhido por Suk para a obra refere-se ao Anjo da Morte da mitologia islâmica – Asrael passa por todas as etapas da dor com a perda, que Flor soube traduzir com grande equilíbrio de expressão. O choque brutal do contato com a Morte é representado por um tema – vindo da música incidental, de 1898, para o drama Radúz e Mahulena, de Julius Zeyer – que é recorrente, e dá à sinfonia a sua forma cíclica. A desolação com a perda é expressa, no Andante, pela citação de um tema do Réquiem de seu mestre bem-amado. E a sensação grotesca do sem sentido da morte explode no Vivace, um revoltado scherzo grotesco de tom mahleriano, dança macabra de contornos expressionistas.

Foi fulgurante a maneira como Flor construiu o apaixonado Adagio em que Suk evoca a sua doce Otilka, retratada em um solo de violino que Cláudio Cruz moldou de forma imaculada. E a execução culminou numa arrebatada realização do Adagio e mesto, que exprime a luta da força vital contra o niilismo da morte, e termina com uma página belíssima, que é triste mas não passivamente resignada, uma serena afirmação da capacidade da vida de superar a perda.

Quando nos deparamos, uma vez mais, com uma grande obra do repertório, muito familiar para nós, uma maneira de avaliar a sua apresentação é sentir o quanto ela nos faz perceber de novo na partitura. Foi o que aconteceu com o Concerto nº 1 em Ré Menor Op. 15, de Johannes Brahms, com o qual Claus Peter Flor abriu o concerto de quinta-feira. De saída, digamos que foi uma decisão muito acertada inverter a ordem antes prevista do programa: depois de uma obra densa e longa como Asrael, o desgaste no leque de atenção do público teria certamente prejudicado a audição do concerto.

Sem ignorar o lado ciclópico, musculoso do op. 15, Flor preferiu privilegiar a sua vertente lírica, as reservas de contida emoção que se dissimulam por trás de um exterior às vezes rugoso. Andamentos pausados permitiram moldar cuidadosamente o fraseado; um grande senso das gradações dinâmicas garantiu o perfeito balanceamento solista/orquestra; e o tratamento analítico da partitura ressaltou detalhes muito preciosos da instrumentação.

Também Arnaldo Cohen – cuja interação com o regente era visível – equilibrou-se desenvoltamente entre os dois polos da obra, tirando dela efeitos muito delicados, sobretudo no ponto alto que foi a execução do Adagio, lento, introspectivo, num tom de enlevada meditação. Ao resultado de conjunto obtido na apresentação do concerto de Brahms, somou-se o delicado Liszt do extra – um compositor cuja obra Cohen vem tocando de forma particularmente feliz.