O SUS tem remédio

Folha de S. Paulo - 17/9/2003

qua, 17/09/2003 - 9h40 | Do Portal do Governo

Tendências/Debates – Por Luiz Roberto Barradas Barata *


Folha de S. Paulo – Quarta-feira, 17 de setembro de 2003

Todos que trabalhamos há muito na área da saúde pública, lutando pela instituição e pelo avanço do SUS (Sistema Único de Saúde), sentimos, apesar das visíveis melhorias, uma falha gritante no atendimento do sistema: a garantia de acesso aos medicamentos para todos os cidadãos brasileiros.

Se, por um lado, a saúde não pode ser reduzida à prescrição de remédios, por outro, o limitado poder aquisitivo da maioria de nossa população torna a ampla distribuição dos medicamentos um imperativo. Tanto que, no combate às grandes endemias do país, o poder público já garante o tratamento completo para os pacientes. No caso da Aids, o programa brasileiro de combate à doença é considerado o melhor do mundo pela Organização Mundial da Saúde, dispensando aos pacientes o coquetel de anti-retrovirais.

Entretanto, para a maioria das demais doenças, a história sempre foi diferente: ou não se dava nenhum remédio, ou a entrega era cercada por tantas falhas que qualquer esquema terapêutico entrava em colapso. A penúria no fornecimento de medicamentos era tamanha que o povo nem reclamava. Se o cidadão tivesse condições financeiras, fazia um esforço e comprava. Não podendo, entregava nas mãos de Deus.

Essa era a situação em São Paulo até 1994. O Estado e os municípios compravam medicamentos de forma desintegrada, irregular e sem controle adequado de estoques. O Ministério da Saúde, por sua vez, fornecia quantidades de forma imprevisível. Resultado: desperdícios e perdas constantes dos ‘raros’ medicamentos da rede pública.

O Estado resolveu, a partir de 1995, mudar essa situação, resgatando o papel da Furp (Fundação para o Remédio Popular), um laboratório público estadual que não recebia investimentos havia anos. Em vez de produzir, a instituição apenas comprava medicamentos, para distribui-los sem planejamento. Os governos Covas e Alckmin investiram, na fábrica, mais de R$ 47 milhões, ampliando sua área construída de 18 mil m2 para 39 mil m2 e aumentando sua produção em quase 500% de 1994 a 2002.

A medida foi fundamental para garantir o sucesso do programa de assistência farmacêutica básica do Estado de São Paulo, o Dose Certa, que fornece 41 tipos de medicamentos para as doenças mais comuns da população nas 645 cidades paulistas, atendidas pela rede de unidades básicas de saúde municipais. Trata-se de um programa revolucionário: o governo do Estado produz e distribui os medicamentos para os municípios independentemente de linhas político-partidárias, e são as unidades municipais que os entregam aos pacientes.

Com a participação do ministério e dos municípios, foi pactuada a aplicação de recursos da ordem de R$ 2 por habitante ao ano, dos quais R$ 1 é proveniente do ministério e, no mínimo, R$ 1 da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, para a lista dos 41 medicamentos, mas também prevendo outros 34 itens a serem complementados por meio de contrapartida municipal de, no mínimo, R$ 0,50 por habitante ao ano.

Os recursos totais gastos no programa são crescentes. De R$ 61,2 milhões anuais em 1999, os investimentos passaram para R$ 87,9 milhões em 2002 e para R$ 47,7 milhões até junho de 2003. Isso graças ao aporte do governo estadual, que aplicou R$ 50,5 milhões em 2002 e R$ 27,8 milhões até junho de 2003, ou seja, sempre mais do que, teoricamente, seria sua parte mínima obrigatória -R$ 37 milhões ou R$ 1 por habitante ao ano.

Também na capital paulista os quantitativos e valores correspondentes aos medicamentos do Dose Certa estão aumentando ano a ano. Os valores dos medicamentos repassados a esses serviços passaram de R$ 12 milhões em 2001 para R$ 14,9 milhões em 2002. Até junho deste ano, já tinham sido investidos R$ 10 milhões. A esse montante ainda devemos acrescer os valores dos medicamentos utilizados nos ambulatórios estaduais situados na capital: R$ 2,9 milhões em 2001, R$ 3,2 milhões em 2002 e R$ 1,9 milhão até junho de 2003.

A Furp tem distribuído os medicamentos de forma descentralizada às 400 Unidades Básicas de Saúde do município de São Paulo. Evidentemente, um programa desse porte, que jamais havia sido implantado no serviço público, criou entre os cidadãos tamanha consciência de direitos que, se a Furp atrasar, ainda que por poucos dias, suas entregas aos municípios, a gritaria será geral.

Mas valeu a pena. O SUS, em São Paulo, já tem muitos remédios: não só o Dose Certa, mas também medicamentos para a saúde mental -o Dose Certa Saúde Mental- e para doenças que exigem medicamentos de alto custo, como o elogiado programa de tratamento da Aids e de moléstias menos conhecidas, como a doença de Gaucher e as hepatites virais.

Esperamos que o governo federal, reconhecendo o exemplo de São Paulo, amplie os recursos financeiros para a assistência farmacêutica, permitindo aos demais Estados realizar aquilo que já foi definitivamente conquistado pelos paulistas.

* Luiz Roberto Barradas Barata, 43, médico sanitarista, é secretário de Estado da Saúde de São Paulo.