O passado e o futuro do velho prédio do Dops

Jornal da Tarde - 17/5/2002

sex, 17/05/2002 - 10h33 | Do Portal do Governo

O armazém feito pelo arquiteto Ramos de Azevedo em 1914 e que já foi presídio político de triste memória será um centro cultural. Esse é o assunto do arquiteto da reforma e um ex-preso político

Dois homens envolvidos com o prédio do Dops, onde se torturavam presos, encontraram-se nesse mesmo prédio, na terça-feira. Nunca haviam se visto antes. Um é o arquiteto Haron Cohen, que está terminando de restaurar o prédio. Outro, o economista Paulo de Tarso Wenceslau, que participou da luta armada durante o regime militar e sofreu os horrores da tortura.

O que Cohen está fazendo desfigura inteiramente o que Wenceslau traz na memória. O Dops (o Departamento de Ordem Política e Social) de Wenceslau, é um lugar sinistro. Os presos do prédio de tijolos vermelhos do Largo General Osório, perto da Estação da Luz, eram retirados das celas, no térreo, e levados para a tortura, no quarto andar.

‘Eles me levavam para a sala onde funcionava a administração. Tiravam uma barra de ferro de trás de um armário, aproximavam duas mesas e montavam um pau de arara. E me penduravam. Depois, pegavam a maquininha e me davam choque. Eu saía de lá carregado.’

As salas do quarto andar não existem mais, como tal. Agora o andar é um espaço único, livre, claro, com os janelões de 4,5 metros de altura à vista.

O pé direito (a altura do teto) de 5 metros empolga Cohen: ‘É a melhor área para as exposições do museu’. O prédio sediará o Museu do Imaginário do Povo Brasileiro, com inauguração prevista para 23 de junho.

As obras da restauração não deixaram vestígios da lúgrube repartição policial. Em seu lugar, reapareceu o belo armazém projetado pelo renomado escritório Ramos de Azevedo, em 1914, para a Estrada de Ferro Sorocabana. Na fachada de 75 metros de comprido, cinco andares, o vermelho encardido dos tijolos à vista desapareceu. Jatos de água e ácido devolveram a primitiva cor de tijolo.

Os ocupantes do Dops submeteram o velho prédio a torturas arquitetônicas.

Algumas das portas de entrada foram retiradas. Em seu lugar, ergueram um muro, com um vitrô de vidros opacos por cima. As portas originais jamais foram achadas, mas Cohen mandou construir réplicas perfeitas, que foram instaladas.

As celas onde Wenceslau e tantos outros ficaram foram preservadas. Estão num anexo, nos fundos do prédio. Não foi possível manter a aparência original, os grafites nas paredes. Quando o Dops foi extinto, diferentes setores da polícia funcionaram ali. Os presos eram outros e as marcas deixadas, também.

O arquiteto e o ex-preso foram ao prédio para dar entrevista ao JT. E acabaram por encontrar-se. Diante das plantas da obra, começaram a conversar. Wenceslau, apontando o lugar onde estão as quatro celas, no térreo:

– Depois das celas tinha uma porta no corredor, que dava para o Fundão. O Fundão eram três celas individuais, para manter presos incomunicáveis. Mas não existem mais, não é?

– É, depois que o Dops saiu, elas foram usadas como almoxarifado de uma creche da estrada de ferro, acho que a Fepasa. E mais para frente demolidas.

– Aqui onde está um espaço vazio (aponta a planta), antes das celas, tinha duas salas de carceragem, uma maior e outra menor. Lembro bem. E, junto delas, uma quinta cela, isolada das outras.

– Quando começamos a trabalhar só tinha as quatro celas. Eu não soube de uma quinta…

– Foi nessa quinta que o Bacuri (Eduardo Leite) ficou. De manhã chegou um jornal dizendo que ele tinha morrido num acidente. Mas ele estava lá, vivo.

À noite, eles passaram óleo nas juntas das portas, para não fazer barulho.

Tiraram o Bacuri da cela escondido, mas nós percebemos e começamos a gritar.

No dia seguinte ele foi encontrado morto, num lugar entre Santos e Bertioga.

Cohen cita uma série de construções que encontrou (e demoliu) nos fundos do prédio, no lado oposto ao das celas. ‘Era uma porção de quartinhos, com uma cobertura vagabunda, parecia uma favela.’ Acha que tinham todo o jeito de local para manter ou torturar presos. Wenceslau diz que não esteve nos quartinhos. E a utilidade deles ficou no ar como um mistério.

Depois da conversa, Wenceslau foi às celas. As quatro estão juntas, uma ao lado da outra. Hoje, têm um aspecto asséptico. Bom acabamento, pintura nova, spots no teto alto (devem abrigar telas de artistas plásticos sobre Direitos Humanos). E lugar para o ar-condicionado central. Nos fundos das celas há um pequeno espaço aberto e, acima dele, a janela com grades.

O ex-preso foi recordando. ‘Quando fiquei aqui, a luz era uma única lâmpada pendurada no teto. Nesse pequeno espaço, havia um vaso sanitário e uma pia.

Só a cela número um teve cama, durante algum tempo: quatro beliches, para oito pessoas. Mas havia muito mais presos do que isso. Nas outras celas não tinha cama, os presos dormiam no chão.’

A única coisa que guarda a aparência original são peças da porta. O ferrolho que a trancava. O guichê, como os presos chamavam uma portinhola para passar a refeição. E, acima dele, o gradeado de uma pequena abertura. ‘Essa abertura geralmente era fechada, para a gente não ver quem passava fora. A comida vinha no caldeirão do Presídio Tiradentes (hoje inexistente) e era horrível.

Pintura nova no muro do corredor

As janelas das celas abrem para um estreito corredor, encimado por grades, onde os presos tomavam banho de sol. Esse benefício, diz Wenceslau, era raro. O muro do corredor tem hoje bom acabamento e pintura nova. ‘Naquela época ele era todo cheio de musgo, bolorento.’

O espaço vazio onde antes havia duas salas da carceragem (referidos por Wenceslau na conversa com Cohen) deve receber quadros sobre tortura, de artistas sul-americanos. O espaço e as celas foram batizados como Memorial do Cárcere.

Fora deste lugar, tudo no ex-prédio do Dops está em obras de acabamento.

Wenceslau se admirou ao ver os andares transformados em um espaço livre.

‘Está bonito, é impressionante como mudou.’ Nos segundo e terceiro andar estarão as exposições permantes do museu. No quarto, as temporárias.

As exposições devem ligar-se à temática do museu, o imaginário do povo brasileiro. Os reflexos do ciclo do café em São Paulo, e o do ouro em Minas poderiam ser temas marcantes. ‘Mas se quiserem expor um Velásquez (pintor espanhol, 1599-1660, autor do célebre As Meninas) não haverá nenhum problema’, diz Cohen, o arquiteto.

O ar condicionado será adequado, bem como as condições de segurança. Estas incluirão câmeras de vigilância e o sistema que dispara um alerta, se uma pessoa aproxima a mão de uma obra. No térreo, estão sendo preparadas salas para recepção e preparação das obras.

O térreo terá, no lado esquerdo, vizinho da Estação Júlio Prestes (onde está a Sala São Paulo), uma ‘loja do museu’ e um bar. As mesas do bar se estenderão para uma ampla calçada que avançará para o pátio existente nos fundos do prédio (onde fica o estacionamento subterrâneo). Pode-se ir ao bar sem ingressar no museu propriamente dito, que terá entrada paga.

A restauração do prédio deu trabalho a Cohen. A edificação tem duas torres, servidas cada uma por um elevador. Os elevadores originais, de porta pantográfica (de correr, vazada), foram trocados na época do Dops. E não foi possível voltar a substituí-los. Mas outros dois, novos, foram instalados.

No terceiro andar, as torres não se comunicavam. Era preciso descer ao andar de baixo para ir de um lado a outro do prédio. O problema foi resolvido com a instalação de um mezzanino. Nos fundos do prédio, havia de tudo: de anexos a ‘puxados’ da época da construção. Tudo veio abaixo.

No último andar, o quinto, foi criado um auditório, ainda não mobiliado. A obra toda vai custar em torno de R$ 15 milhões, investimento da Secretaria da Cultura do Estado e do Ministério da Cultura.

Valdir Sanchez