O olhar visionário do mestre japonês

O Estado de S.Paulo - Sábado, 3 de maio de 2008

sáb, 03/05/2008 - 13h19 | Do Portal do Governo

O Estado de S.Paulo

A demanda por xilogravuras no período Edo fez crescer a popularidade do Ukiyo-e a ponto de tornar os artistas pouco exigentes na hora de aceitar uma encomenda. Sendo boa parte dos compradores comerciantes sem gosto, muitos foram os artistas que não resistiram à massificação, produzindo em grande quantidade – e pouca qualidade – xilogravuras de cortesãs em poses sugestivas, atores populares do teatro Kabuki e lutadores de sumô de expressão bizarra. As gravuras de Kitagawa Utamaro, que retratam gueixas com um dos seios à mostra – e que o levaram à prisão por violar leis da censura -, ou as de Sharaku, em que proliferam tipos grotescos, são exemplos de uma arte corrompida pelo dinheiro da burguesia ascendente do período Edo, à qual Hiroshige fez poucas concessões, como mostra a gravura impressa nesta página, uma vista do Monte Fuji desde o pontal de Satta, na Baía de Suruga.

Hiroshige resistiu ao apelo dos hedonistas. Permaneceu lírico, enquanto seus colegas sucumbiram ao gosto médio, apelando para linhas sensuais, cores extravagantes e um olhar irônico que passa longe da poesia do mestre, também conhecido por outra famosa série além das vistas do Monte Fuji, a das 53 estações de Tokaido, uma das rotas que ligava Edo (Tóquio) a outras regiões do Japão. Como os pintores impressionistas, Hiroshige foi um peregrino, um pintor viajante em busca de novas paisagens, aceitando a incumbência de registrar (em 1832) as províncias ao redor de Tokaido, acompanhando uma delegação encarregada de levar cavalos à corte imperial.

Nas 36 Vistas do Monte Fuji, o traço marcante dessas paisagens, reproduzidas à exaustão desde o século 19, é justamente o discreto registro da presença humana, que transmite ao conjunto um sentimento de intimismo e quietude, incomum nas gravuras de um Utamaro que, corrosivo, usou a figura de forma caricatural. Utamaro teve o mérito de influenciar pintores como Toulouse-Lautrec, que deve bastante de sua fama à explosão cromática e às linhas sintéticas dos retratos do japonês. A identificação não parou por aí: ambos foram assíduos freqüentadores de bordéis.

Já Hiroshige era discreto e respeitava a ética do trabalho árduo. Mesmo em séries como as 36 Vistas do Monte Fuji, em que a presença do vulcão é o tema principal, os personagens que povoam as paisagens das províncias de Shimosa, Kazusa, Shinano e Kai, entre outras de onde a montanha é vista, são sempre trabalhadores em atividade, seja conduzindo uma jangada ou transportando nobres em viagens fluviais. Chama a atenção o talento visionário de Hiroshige, que antecipa a composição cinematográfica ao retratar algumas dessas paisagens, em particular uma na planície de Kogane, província de Shimosa, em que um cavalo, em primeiríssimo plano, joga para trás o Fuji, visto como um liliputiano monte ao fundo.

Considerando que o Monte Fuji foi celebrado por outros artista gravadores – inclusive Hokusai – por sua relevância religiosa, a busca de harmonia entre animal, homem e natureza em Hiroshige não surpreende. Hokusai tinha a mesma percepção do monte como fonte do segredo da imortalidade, mas sua visão é de inquietude. Hiroshige busca o equilíbrio. Hokusai, a energia violenta que emana desse vulcão, visto pelos japoneses como depósito de um elixir vital por uma entidade fora do mundo natural – é dele a mais reproduzida gravura de Ukiyo-e, a da grande onda de Kanagawa, que sugere um tsunami a derrubar frágeis barquinhos diante do monumental Fuji, visto ao longe.

Ao contrário de Hokusai, que absorveu o excesso barroco ocidental com relativa facilidade, Hiroshige buscou a placidez protominimalista de traços essenciais com os quais criou mais de 30 séries de gravuras, como comprovam seus livros de esboços, econômicos e precisos. Muitas dessas obras pertencem ao acervo da coleção da família Sakai, de Matsumoto, que criou o Museu de Ukiyo-e da cidade, na província de Nagano, em 1982. Espera-se que a série do Monte Fuji seja o início de um longo intercâmbio com os museus brasileiros.

EVOLUÇÃO: É difícil compreender o fenômeno do Ukiyo-e sem aludir ao contexto em que nasceu essa técnica de arte, desenvolvida durante o período Edo. Os comerciantes que compravam esse tipo de gravura, produzida para alimentar o mercado editorial, ávido por novelas satíricas, eram burgueses capazes de arcar com a compra de uma obra de arte, mas não suficientemente ricos para encomendar uma boa pintura a um renomado artista, como faziam os nobres. O século 17 viu florescer o mercado de gravuras e o livro impresso virou, então, objeto artístico cobiçado por burgueses letrados. Ao mesmo tempo, o advento de uma literatura ligada a descobertas científicas exigia artistas especializados em plantas e ervas para ilustrar livros de botânica.

Foi mais ou menos por volta de 1670 que um artista, Hishikawa Moronobu (1630-1694), começou a chamar a atenção de editores por suas extraordinárias xilogravuras em preto-e-branco, obras que retratavam o cotidiano japonês com a mesma simplicidade com que o cineasta Ozu, séculos mais tarde, filmaria as famílias japonesas em suas casas. Foi só por volta do século 18 que essas gravuras ganharam cores, provavelmente por influência de técnicas chinesas, aperfeiçoadas no Japão por artistas como Suzuki Harunobu.

Ao contrário de Harunobu, de uma inocência quase pagã, outros artistas que trabalharam nessa direção usaram as cores para acentuar a luxúria dos ambientes que freqüentavam, como Utamaro, que carregou nas tintas eróticas ao retratar libidinosos casais em bordéis, isso em pleno século 18. O Ukiyo-e descobre, então, sua vocação para o grotesco com as caricaturas de Sharaku, que retratou atores do teatro Kabuki com tal liberdade que não tardou a ser dispensado pelos editores de suas gravuras por pressão de seus caricaturados.

Hoje e no próximo sábado, às 15 horas, um especialista japonês vai apresentar (com tradução) a técnica do Ukiyo-e no auditório da Pinacoteca. As 144 senhas serão distribuídas uma hora antes, no balcão da recepção.

(SERVIÇO)As 36 Vistas do Monte Fuji. Pinacoteca. Pça. da Luz, 2, Luz, 3324-1000. 3.ª a dom., 10 h/18 h. R$ 4 (sáb., grátis). Até 25/5. Abertura hoje, 11 h