O inferno da vida real

A Tribuna - Santos - Segunda-feira, 27 de dezembro de 2004

seg, 27/12/2004 - 9h25 | Do Portal do Governo

Raul do Valle
Colaborador

Vem da França de 150 anos atrás uma das mais importantes manifestações literárias que há quase dois séculos denunciou um problema urbano e marcou uma época cujo desmazelo social infelizmente perpetua-se até hoje em áreas degradadas de países em desenvolvimento.

O romance Os Miseráveis, de Victor Hugo, publicado em 1862, faz uma radiografia dos bairros populares das grandes cidades francesas, com suas severas condições de insalubridade: esgotos a céu aberto, lixo apodrecendo nas ruas e pessoas vivendo socadas em cortiços e habitações precárias.

Referindo-se à própria obra, Victor Hugo afirmou: ‘‘Dante uma vez fez um inferno com a poesia e eu escrevo sobre o inferno que é a vida real de nossa época’’. Ele se reportou ao grande poeta medieval, Dante Alighieri. Em seu livro A Divina Comédia, Dante faz uma viagem ao inferno, ao purgatório e ao céu, discorrendo sobre o trivial e o divino — o sagrado e o profano.

O sofrimento vivenciado no inferno imaginário de Dante se materializou na narração de Victor Hugo sobre a França do século XIX e, o que é pior, perdura até hoje em várias partes do mundo como uma das principais chagas sociais. Registros da ONU indicam que cerca de 5 bilhões de pessoas, ou seja, mais de 80% da população mundial, vivem na pobreza e à margem dos planos sociais.

No Brasil, segundo o próprio Ministério das Cidades, o déficit habitacional é de 6,6 milhões de moradias e existem 15 milhões de residências em condições inadequadas; 45 milhões de pessoas vivem sem abastecimento de água potável e 83 milhões não têm serviço de tratamento de esgoto.

Na cidade de São Paulo são mais de 1,2 milhão de brasileiros que vivem num ‘‘inferno da vida real’’, em extrema precariedade, distribuídos em mais de duas mil favelas em todas as regiões da capital. Outras 50 mil pessoas vivem em cortiços nas áreas centrais da cidade.

Essa situação, que se agrava diariamente, mereceu uma atenção especial por parte do Governo do Estado através da Secretaria da Habitação e da CDHU pois assumimos uma forte atuação no processo de renovação urbana em áreas degradas e em áreas de risco.

De 2003 até hoje, o Governo do Estado investiu na Região Metropolitana em torno de R$ 200 milhões para beneficiar mais de 5 mil famílias com novas moradias, em programas de urbanização e de erradicação de áreas degradadas. Só na Capital, foram removidas, por exemplo, as favelas Anastácio, Viaduto, Vila da Paz, Morro da Lua, entre tantas outras.

Outro programa que está mudando a paisagem de São Paulo é o PAC — Programa de Atuação em Cortiços da CDHU realizado com a cooperação do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Através dele, cortiços são desativados e seus moradores estão sendo transferidos para modernos conjuntos localizados nos bairros centrais de São Paulo, como o Pari, Brás, Santa Cecília, Mooca, etc. Até o final de 2006, 4,5 mil moradias serão entregues na Capital e outras 500 em Santos, representando um investimento da ordem de US$ 70 milhões.

A realidade dos bairros pobres de São Paulo exige muitas vezes uma atuação corajosa. Um exemplo é a intervenção que estamos fazendo na Várzea do Tietê. O projeto de urbanização na Favela Pantanal envolve cerca de 40 mil pessoas, uma população superior a 500 dos 645 municípios do Estado.

Estamos literalmente construindo um novo bairro onde estão previstas obras de saneamento e iluminação pública, remoção de famílias para abrir e alargar ruas, construção de escolas, creches, centros de convivência, parques e túneis de acesso. São obras de impacto não apenas na comunidade mas em toda a região e demandarão a aplicação de recursos superiores a R$ 150 milhões.

O desafio é grande mas lembro uma frase de Victor Hugo: quem perde a coragem perde tudo. O Governador Geraldo Alckmin não perde nada pois tem dado exemplo de coragem política ao enfrentar com firmeza o ‘‘inferno da vida real’’.


Raul do Valle é diretor presidente da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano — CDHU