O Haroldo? Leu todos os livros

O Estado de S. Paulo - São Paulo - Sexta-feira, 17 de dezembro de 2004

sex, 17/12/2004 - 9h35 | Do Portal do Governo

IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO

Num tempo em que tudo é dinheiro ou deve se transformar em dinheiro, deixa gratificado, ou feliz, ver o gesto de Carmem e Ivan, viúva e filho de Haroldo de Campos doando ao Estado, sem nada pedir, uma biblioteca ‘monumental’ para os padrões de nosso tempo: 40 mil volumes. Muito se falou sobre isso, o acontecimento, mas eu saio pela tangente. Os livros de Haroldo fazem parte agora da Casa das Rosas, no início da Avenida Paulista, um centro cultural. A última mansão, restaurada, abriga agora estantes e mais estantes, livros e mais livros, acumulados por mais de 50 anos por um de nossos maiores intelectuais. Podemos somar o acervo de algumas bibliotecas municipais do interior e elas perdem para a de Haroldo. Agora, tudo isso está à nossa disposição.

Terminada a cerimônia, numa manhã de sexta-feira em que o céu ameaçava desabar, entrei para ver os livros, curioso para saber o que Haroldo havia lido. À minha volta, todo mundo tomava sorvetes coloridos em tacinhas de metal, parecia interior. Não achei onde estavam distribuindo os sorvetes de cores vivas. Lentamente percorri as estantes e fui, aleatoriamente, apanhando um volume aqui, outro ali. Louco para encontrar um volume virgem, intocado. Pegar o Haroldo em flagrante. Ah, este ele não leu! Avancei febril: há de haver um que ele comprou, esqueceu, não consultou. E nada! Em cada um havia uma marca qualquer, às vezes levíssima, de que as páginas tinham sido abertas. Espantosa variedade que vai de arte à poesia, da ficção ao ensaio, à fotografia, saltando da Índia para a China, passando pelo México, percorrendo os Estados Unidos e a América Latina. Nem dá para pensar a que horas ele lia, tendo de dar aulas, escrever, fazer poesia, redigir artigos, viver em família. Haroldo foi o erudito sem ser chato, o acadêmico sem ser rançoso, o culto sem ostentação (teve alguma, mas quem não teria, com aquela bagagem?)

Aquela biblioteca é avassaladora e fiquei pensando nas trajetórias que Haroldo fez por dentro dela, com o mesmo maravilhamento de todos os que têm paixão por livros. Aquela biblioteca, agora na Casa das Rosas, ao alcance de todos nós (obrigado pelo esforço, Claudia Costin) foi me deixando pequeno, pequeno, me obrigou a ser humilde, a reconhecer o meu escasso conhecimento. Sei que livros não são para humilhar, mas passear junto daqueles ali me fez refletir sobre a vida que levamos, a velocidade, a superficialidade de uma cultura apressada, as leituras quase diagonais. Parece que Haroldo não tinha pressa, envolvido por aqueles 40 mil volumes. Com todos os problemas, um homem que vive cercado por 40 mil volumes, todos de categoria, deve ter sido um homem feliz. Mais feliz agora quando vê – em alguma parte ele vê – que o resultado de uma vida não foi trocado por dinheiro. Trocou-se, sim, de ambiente. O que antes era dele, inacessível ao público em geral, agora é de todos nós. Bibliotecas só têm vida quando ao alcance de todos. Assim como livros só vivem quando abertos e lidos.

Nos anos 80, eu estava em Colônia, Alemanha, com um grupo de escritores e coube-me estar ao lado de Haroldo em uma fala na Universidade. Ao lado de Ray-Güde Mertin, tradutora e agente, e de João Ubaldo Ribeiro, descemos do metrô e fomos a pé atravessando um campus verde, repleto de alemãzinhas loiras de olhos claros, pele branca. Haroldo era grande, tinha a barba branca e caminhava desenvolto. Ao passarmos por um grupo, um jovem (seria um cinéfilo?) murmurou: ‘Olha, o Orson Welles!’ Haroldo não ouviu, eu contei, ele sorriu, adorou. Eu, nervoso. Ter de falar depois dele, com toda a sua cultura, erudição, possibilidades de fazer mil citações? Teria de falar antes, livrar-me logo. Lado a lado à mesa, comecei a contar casos, constrangido, suando e esperando acabar, passar a bola. Quando terminei, aliviado, e consegui respirar, olhei para ele, sorria: ‘Por que tão curto?’, perguntou. Ia dizer: de medo? Pavor? Parece que ele aprovou. Mais pela generosidade. Nessa tarde descobri que ele era um homem bem-humorado, engraçado e nada chato, intelectual no bom sentido, amante dos prazeres, como o belo vinho do Mosel, fresco, que tomamos depois na própria cantina da universidade. Atenção, quando for à Casa das Rosas, dê um tempo às fotos de Haroldo feitas por German Lorca. Fortes, humanas.

Quando tudo terminou, saí para a Avenida Paulista, era hora do almoço. Onde comer? De repente, na Praça Osvaldo Cruz bati os olhos no letreiro: Ponto Chic. O do bauru e do mexido na frigideira. Comer sozinho? Olhei para trás, o governador Alckmin estava entrando em seu carro. E se eu me arriscasse, voltasse, rompesse a segurança (afinal, Claudia Costin estava ali ao lado) e convidasse: ‘Vamos comer um mexido, governador?’ Quer coisa mais paulistana? Será que ele conhece o mexido de presunto, queijo e ovos do Ponto Chic? Sabe que é essencial comê-lo na frigideirinha amassada? Terá idéia de que o mexido tem o mesmo gosto há 50 anos? Será que em Pindamonhangaba havia um restaurante que fizesse mexidos e baurus como os do Ponto Chic? Ele teria gostado? Ou me olharia e diria: ‘Qual é a tua?’

Teríamos de atravessar a rua a pé ou fazer os carros oficiais darem uma volta enorme e parar à porta? Um governador pode andar pelas ruas, assim como um zé qualquer? Os seguranças ficariam na porta, segurando? Os garçons – que são de primeira, atenciosíssimos -, como reagiriam? A conta seria cobrada?

Quando percebi, o carro oficial passou por mim e disparou, não fiz o convite. E a secretária Costin? Mas aí ela já estava envolvida por um mundo de gente, me afastei, entrei no restaurante, estava quieto e calmo, o pessoal dos escritórios, das lojas e do Shopping Paulista ainda não chegara para o almoço. O mexido tinha o sabor habitual. Comi lentamente, sozinho, sem o governador, sem a secretária.